Devires
Pensar o impensável entre a filosofia e a diferença
“A filosofia da diferença caminha desviante às intuições do pensamento ocidental. Foge ao nosso escopo refletirmos sobre o pensamento ocidental, tarefa por demais abrangente. Definiremos, então, o que nos parece o mais reincidente e que também é o que deve ser repensado no pensamento ocidental pela filosofia da diferença.”
O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo tempo é irredimível.
O que poderia ter sido é uma abstração
Que permanece, perpétua possibilidade,
Num mundo apenas de especulação.T. S. Eliot
Pensar o impensável. Pensar o devir é um “fracasso” em si, porém, é a partir do pensamento que almejamos aqui, ir para além do próprio pensamento. A linguagem não é um limite, apenas o trampolim. Para tanto, partir da filosofia da diferença parece relevante. Eis:
O que é a Filosofia da Diferença?
A filosofia da diferença caminha desviante às intuições do pensamento ocidental. Foge ao nosso escopo refletirmos sobre o pensamento ocidental, tarefa por demais abrangente. Definiremos, então, o que nos parece o mais reincidente e que também é o que deve ser repensado no pensamento ocidental pela filosofia da diferença.
O pensamento ocidental – e, por consequência, nossa intuição, forma de ver e estar no mundo – são marcadas por várias dualidades. A separação entre natureza e cultura é uma das mais proeminentes. Acreditamos, diante de uma tradição platônica, cartesiana e kantiana etc, que a existência física das coisas do mundo está desconectada com o que se produz pela ação humana, e esse pensamento já coloca a ação humana como absolutamente central nas reflexões sobre o que se acredita ser “cultura”. Mas vejamos alguns problemas dessa visão: as bactérias são “natureza”. As colônias de bactérias são também “natureza”. Curiosamente, as colônias de bactérias são também chamadas de “culturas” de bactérias, mas em outro contexto. Porém, o que faz as bactérias se organizarem como colônias? A estrutura da colônia, além de estar “programada” pela natureza, não seria também uma “sociedade”, logo, uma sociedade “cultural” . O pássaro joão-de-barro, por exemplo, é “natureza”. E a sua “casa”? Seria “natureza”, poderia se dizer, já que ela é produzida por um animal que não possui “cultura”, ou diriam outros, não possui “consciência”. Mas, a “casa” do joão-de-barro é uma moradia, uma produção: características de uma… “cultura”. Adiante: no caso do homem, ele é considerado “natureza”, mas tudo que ele faz intencionalmente (aqui mantendo uma separação mente-corpo que não nos será útil no desenvolver deste trabalho, estamos excluindo com o termo “intencionalmente” os funcionamentos biológicos do corpo) é considerado “cultura”. Assim, as edificações, os conhecimentos, as artes, estão todas relegadas à categoria de “cultura”, porém, se observadas no contexto da existência física, e não da sua propriedade de serem artefatos humanos, são objetos da “natureza”. Os funcionamentos biológicos do corpo humano, usualmente considerados “natureza” como as colônias de bactérias, podem ser considerados colônias (ou sociedades) de células, e, portanto, “cultura”.
Todas estas separações nos parecem ser bastante arbitrárias e pouco funcionais. A separação entre natureza e cultura se desdobra em várias outras, com suas próprias dificuldades que produzem a necessidade de avançarmos para além de várias destas separações. Citaremos aqui apenas dualidades mais recorrentes (sabendo que estas se desdobram em muitas outras) e suas respectivas possibilidades de rompimento com a suposta intransponibilidade dos seus limiares e seus respectivos autores, ou como diria Feyerabend (2003), “Cultura e Natureza (ou Ser , para usar um termo mais geral) estão sempre emaranhados de um modo que pode ser investigado só entrando em emaranhados adicionais e ainda mais complicados”:
. natureza e cultura: coletivos (Bruno Latour)
. ontologia e epistemologia: ontologia plana (Manuel Delanda)
. corpo e mente: paralelismo psicofísico (Leibniz), imanência (Spinoza) e (proto)panpsiquismo (Leibniz, Whitehead)
. sujeito e objeto: relação (Whitehead, Bergson)
. ficção e realidade: caóides (Deleuze e Guattari)
. vivente e não-vivente: animismo (Lovelock)
. indivíduo e sociedade: propriedade (Tarde) e agenciamento (Manuel de Landa)
. interior e exterior: dobra (Deleuze)
. partícula e onda: quantom (Bunge)
Utilizaremos aqui a concepção de Filosofia da Diferença como Deleuze (2006a) defende em seu livro Diferença e Repetição: pretende-se “tirar a diferença de seu estado de maldição”; não mais subordinar a diferença à oposição, analogia, semelhança, negação, identidade, ou seja, a todos os aspectos da mediação e da representação, pois assim chegamos à diferença pura. Não é inscrever a diferença no conceito em geral. A diferença é afirmação. A Filosofia da Diferença não tem pressupostos, é um pensamento sem imagem. Não é uma questão de dado, e, sim, de como o dado é dado. O processual é uma tônica extremamente relevante, assim como o conceito de devir, de que falaremos adiante.
O esquizoanalista Félix Guattari (1990) alerta: “As oposições dualistas tradicionais que guiaram o pensamento social e as cartografias geopolíticas chegaram ao fim. Os conflitos permanecem, mas engajam sistemas multipolares incompatíveis com adesões a bandeiras ideológicas maniqueístas”. Se não temos mais o mundo dividido em duas políticas opostas, temos um mundo cada vez mais multipolar, em termos de envolvimento de países em desenvolvimento, mas também cada vez mais com um pensamento financeiro único. Uma ética que preze pela coexistência do um e do múltiplo se faz ainda mais necessária, tanto para se repensar os rumos político-econômicos, como para rever todos os desdobramentos subjetivos dessa problemática.
Um autor em que Deleuze se inspira e que pode jogar luz na conceituação da diferença é Gregory Bateson (2000a) que trabalhou com relevância na antropologia, na clínica do alcoolismo e da esquizofrenia, na cibernética e na teoria da comunicação. Bateson é um autor transdisciplinar dos mais consistentes. Ele se distancia da filosofia kantiana, em que o pedaço de giz teria inúmeras qualidades que nunca perceberíamos na sua totalidade (a coisa em si). O antropólogo cria um exemplo em que existem várias diferenças entre o giz e o universo, entre as moléculas internas do giz, mas percebemos apenas parte destas diferenças, que são diferenças entre diferenças. Sendo assim, para Bateson, “a unidade elementar de informação é a diferença que faz uma diferença”.
Como todo pensamento do “entre”, é difícil precisar um início da Filosofia da Diferença. Tendo como “precursores” Heráclito e o seu pensamento acerca do devir, os estoicos, podemos eleger como um dos primeiros pensadores relevantes o filósofo Baruch de Spinoza, indo até Gilles Deleuze, na segunda metade do século XX. Finalizaremos com o filósofo contemporâneo Manuel Delanda. Vamos agora eleger os autores mais relevantes e, partir de suas obras, delinear os desdobramentos dos conceitos ao longo da história do pensamento.
Heráclito
Heráclito de Éfeso (aproximadamente 540–480 a.C.), conhecido também como “o Obscuro” por muitas vezes falar através de enigmas, foi um dos principais filósofos pré-socráticos e um dos pensadores jônios. Existe uma discussão (KIRK, RAVEN e SCHOFIELD, 1994) sobre o grau de importância que Heráclito dava à questão da mudança ou devir, pois a mudança era uma questão recorrente entre os pré-socráticos. É notório que Heráclito enfatizava a mudança, mas com destaque na estabilidade que a tensão entre mudanças gerava. Diferentemente de Parmênides (que é um pensador da estabilidade, mas talvez exageradamente pensado em oposição a Heráclito), Heráclito confiava na verdade dos sentidos, então, não se sabe se ele realmente acreditava que, por exemplo, as rochas, que não mudariam aos nossos olhos, realmente mudavam. Para Bergson (2005a), a mudança em Heráclito era universal, pois em sua época não havia sido estabelecida a diferença entre o sensível e o inteligível. É emblemática a citação sobre o rio, considerada a metáfora heraclitiana da mudança por excelência: “Para os que entrarem nos mesmos rios, outras e outras são as águas que por eles correm… Dispersam-se e… juntas vêm e para longe fluem… aproximam-se e afastam-se.” Pois o rio de Heráclito seria, então, uma pororoca cósmica!
Na filosofia de Heráclito, o constituinte das coisas é o Logos, muitas vezes coextensivo ao fogo, constituinte cósmico primário: “Esta ordem do mundo [a mesma de todos] não criou nenhum dos deuses, nem dos homens, mas sempre existiu e existe e há de existir: um fogo vivo, que se acende com medida e com medida se extingue”. “Todas as coisas são igual troca pelo fogo e o fogo por todas as coisas, como as mercadorias o são pelo ouro e o ouro pelas mercadorias. (…) O fogo, sobrevindo, há de distinguir e reunir todas as coisas”.
A coexistência do um e do múltiplo começou a adquirir corpo com Heráclito: “As coisas tomadas em conjunto são o todo e o não todo, algo que se reúne e se separa, que está em consonância e em dissonância; de todas as coisas provém unidade, e de uma unidade, todas as coisas”.
É recorrente no pensamento de Heráclito a tensão das coisas e o uso da metáfora da guerra para ilustrar tal tensão que reflete a mudança. A vitória desta guerra efetua uma estabilidade temporária e esta possibilidade se dá neste mundo e em todo o cosmos.
Existem certas influências da filosofia de Heráclito no pensamento estoico. Porém, no tocante aos elementos que compõem o cosmos, os estoicos acrescentam o ar ao fogo, que gera terra e mar.
O advento da filosofia de Heráclito no Ocidente nos força a observar um zeitgeist da conceituação da mudança, pois conceitos semelhantes se instalam simultaneamente também no Oriente, na China, como nos diz Cheng (2008, p. 36): “O pensamento chinês não é da ordem do ser, mas do processo em desenvolvimento que se afirma, se verifica e se aperfeiçoa à medida de ser devir”; o que fica evidenciado com Confúcio (2005, p. 46) “Tudo flui assim, sem cessar, dia e noite”, e no oráculo taoista, o I Ching, que significa justamente o Clássico da Mutação. A filosofia de Heráclito é contemporânea do Confucionismo e também do Budismo, que afirma:
A expressão “caminho do meio” também pode significar evitar os extremos do eternalismo (sassatavāda) e da aniquilação materialista (ucchedavāda); nesse sentido, ela se identifica com a origem interdependente, paticcasamuppāda. Para alguns, isso significa que o conceito de fluxo do devir psíquico deve substituir a noção de substância-alma permanente, bem como sua negação materialista. A interpretação da tradição Mahāyāna representada por Nāgārjuna é superior: ela afirma que nem o ser e o não ser podem verdadeiramente ser predicados do fluxo dos fenômenos contigentes e relativos. (PANDE, 2006, p. 12)
Os estoicos
François Jullien (2000) afirma que os estoicos são o grande exemplo de sabedoria ― em seu sentido que o pensamento chinês cultivou ― no Ocidente, pois se distancia da argumentação crítica, da busca pela verdade e tem um pensamento a-histórico ao qual se dedicar, sobretudo, a um melhor viver se tornando philosophia perennis. A filosofia concebe visando absorver a diferença, sistematiza, obtendo uma panorâmica; a sabedoria atravessa, ligando à diferença, variando e sendo itinerante. Bergson (2005) relaciona o pensamento estoico acerca da alma com o bramanismo, Deleuze (2006b) complementaria as comparações com o Zen acrescentando os budistas.
A escola estoica tem esse nome porque seus primeiros frequentadores se encontravam no Pórtico Pintado (Stoà Poikíle). Considerado como primeiro estoico, Zenon (334–262 a.C.) fundou a principal escola helenística que surgiu com influência socrática. O principal nome dos estoicos foi Cresipo (280–205 a.C.). Eles exerceram influência até o fim do Império Romano, especialmente devido a Marco Aurélio, que, apesar de não se declarar estoico, foi claramente guiado por estes (INWOOD, 2006). Segundo Ildefonse (2007), é deste período imperial o estereótipo de que ser estoico significa “suporte e abstenha-se”, sendo que isto seria baseado em uma parte da moral estoica do período imperial, sabendo que o Estoicismo tem outras vertentes, principalmente a física e a lógica, como veremos. Porém, este estereótipo evidencia a influência do Estoicismo na moral ocidental. Vamos abordar o pensamento estoico em geral, mas cientes de que existem diferenças entre seus autores.
A filosofia estoica tem como base a lógica, a ética e a física; como um animal: lógica (ossos e tendões), ética (partes mais carnudas) e física (alma); um ovo: lógica (casca), ética (clara) e física (gema); ou um pomar: lógica (cerca), ética (fruto) e física (terra ou árvores). Isso mostra que os estoicos evidenciavam a proximidade da física com a ética, pois, para eles, a finalidade da vida humana é viver em conformidade com a natureza. Deleuze (2006b) considera essa separação um tanto rígida e propõe que se quebre o ovo estoico com um bastão, de forma que um pouco de clara se misture à gema e à casca.
Os desdobramentos da filosofia estoica compunham também teologia (deus é o cosmos), determinismo (conexão entre unidade e pluralidade), psicologia (impulso como movimento da alma), gramática (predicado incorpóreo do sujeito), medicina e astronomia.
Para os estoicos, todo o cosmos é um ser vivente. Isso não necessariamente leva a um pampsiquismo, pois no cosmos inteiro existe o sopro divino (pneuma), mas distribuído de forma irregular, o que não gera consciência e razão a todas as coisas. Há uma scala naturae em que o sopro divino nas pedras e na água, por exemplo, lhes confere coerência interna; nas plantas, sustentação; nos animais, percepção e movimento; e nos humanos acrescenta-se o saber.
É célebre a disputa dos estoicos com os epicuristas. Epicuro (341–270 a.C.) afirmava que o ser vivo naturalmente busca o prazer e foge da dor, os estoicos afirmavam que o ser vivo busca naturalmente a autopreservação, como aprender a andar, o que causa dor. Outra diferença é que os epicuristas eram atomistas e consequentemente acreditavam em um universo com vazio. O atomismo foi uma tentativa de articular o devir de Heráclito com a permanência de Parmênides a partir de Leucipo (nascimento datado aproximadamente entre 460–457 a.C.) e Demócrito (460–360 a.C.). Demócrito não deixa claro se o movimento dos átomos é espontâneo ou não. É Epicuro que vai afirmar tal espontaneidade, que gera o desvio do átomo chamado de clinâmen e é comentada no poema de Lucrécio (99–55 a.C.) “De rerum natura” (Sobre a Natureza das Coisas). Deleuze (2006b) considera o clinâmen como uma “causalidade sem destino”, um desvio que está sempre presente. Para Deleuze, Epicuro e Lucrécio inauguram o pluralismo na filosofia.
Os estoicos acreditavam em um universo contínuo e em fusão total, sendo a matéria a mesma para todas as coisas que vêm a ser, uma matéria formada por misturas que são formadas por misturas e assim indefinidamente. O “vazio” dos estoicos é um incorpóreo capaz de ser ocupado por um corpo deixando de ser vazio quando é ocupado, ou seja, o “vazio” estoico não é um vazio em si, mas apenas o espaço que não foi criado com a presença de um corpo. Os incorpóreos fazem parte da ontologia estoica, se diferenciando do “nada”, sendo “algo” (diferente do “ser”). Observamos aqui a semelhança com o Taoísmo, “O imanifesto e o manifesto consurgem” (LAOZI, 2007), e com o conceito de “vazio quântico[1]”, que abordaremos no próximo capítulo. Os incorpóreos são o gênero supremo que abarca tudo o que é real. São compostos, além do vazio, pelo lugar, pelo tempo e pelos “dizíveis”. Sobre o tempo, os estoicos afirmam que o presente, que é estendido, tem um grau de realidade maior que o passado e o futuro. Os “dizíveis” são o que é compreendido do significado pelo pensamento. Veremos que essa ideia de tempo vai ter desdobramentos com Bergson.
As categorias estoicas são as “substâncias”, o “qualificado”, o “disposto de certa maneira” e o “disposto de certa maneira em relação a outro algo”, ou seja, são categorias inclusivas e relacionais.
Como foi visto, os estoicos têm uma psicologia, que é moral, baseada na ética estoica, e ideias acerca da mente, como vimos em relação aos “dizíveis”. Para Zenon ― que segue a ideia da mente de Platão enquanto placa de cera ―, as impressões eram “sinais impressos” na mente. Cleantes e Crisipo discordavam de Zenon e constituíram a ideia de mente que viria a ser predominante no Estoicismo, a de que existem dois tipos de impressões: a cataléptica, que vem de coisas existentes, é clara e dela podemos reinvindicar conhecimento, e a não cataléptica, que vem de algo não existente ou não é clara. As imagens que chegam até os animais são apenas imagens, as que chegam à alma dos animais racionais são conceitos. Os sentimentos são considerados crenças. O prazer também é um tipo de crença, que motiva e causa. É um epifenômeno que surge quando uma natureza busca o que é conveniente a sua constituição e tem êxito em adquiri-lo.
Os estoicos influenciaram muitos filósofos, mas o fato não é explícito e nem reconhecido de forma adequada. Existem traços estoicos em Descartes, Leibniz, Rousseau, Adam Smith e Kant. Entre os autores mais recentes, Bergson, Foucault e Deleuze são abertamente influenciados pelos estoicos. Vamos abordar agora as relações possíveis do Estoicismo com o pensamento de Spinoza.
Spinoza
Não existe uma opinião majoritária sobre a intensidade da influência estoica em Spinoza. Em sua Ética (SPINOZA, 2008) o filósofo faz uma breve citação ao Estoicismo no prefácio da parte V, que é considerada equivocada (INWOOD, 2006) por confundir as teses estoicas das paixões com as da liberdade da vontade. Leibniz considera Spinoza como parte de uma nova seita estoica. A interface mais óbvia e mais complexa é a identificação Deus-Natureza: para Spinoza, a identidade Deus-Natureza é axiomática; para os estoicos, houve um momento em que Deus existia em si mesmo, criou o cosmos e então eles vieram a se fundir. Deus, no Estoicismo, é um princípio ativo e a matéria é um princípio passivo, mas constituem um mundo unitário, pois Deus só age na matéria. Ambos acreditam que o homem deve viver em consonância com a natureza. Algumas das diferenças entre o Estoicismo e Spinoza: o Deus de Spinoza é infinito, não dirige as coisas a um fim e nós não pensamos como Ele; o Deus estoico é finito, teleológico e pensa da mesma forma que os humanos.
Vamos nos aprofundar no conhecimento da obra deste filósofo. Baruch de Spinoza (1632–1677) foi conhecido, sobretudo, por pensar em consonância com suas ações. Muito se especula sobre sua vida pessoal, mas sabe-se que nunca fez concessões pelo que pensava e, consequentemente, foi excomungado pela comunidade judaica. Não existe um consenso sobre a vida íntima de Spinoza; um relato possível (DAMÁSIO, 2004) seria que o filósofo, em sua juventude, frequentou a escola do libertino e subversivo Frans Van den Enden, onde aprendeu filosofia, medicina, história, política e amor livre, principalmente nos braços de Clara Maria Van den Enden. Devido a suas posições firmes, Spinoza tinha uma vida simples e pouco dinheiro, pois trabalhava como polidor de lentes. Muito conveniente: estava, de um jeito ou de outro, proporcionando à humanidade “enxergar melhor”.
O livro considerado mais importante de Spinoza é Ética. Já o Tratado da Reforma da Inteligência (SPINOZA, 2004), livro inacabado, é considerado a melhor introdução ao Ética. O que podemos ressaltar no Tratado é que Spinoza deixa claro que o que ele quer propor é “a união da mente com a natureza inteira”. Essa “natureza” vai ser trabalhada como substância na Ética. Vejamos então os principais conceitos deste livro magistral:
3-Por substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e que por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deve ser formado.
4- Por atributo compreendo aquilo que, de uma substância, o intelecto percebe como constituindo a sua essência.
5- Por modo compreendo as afecções de uma substância, ou seja, aquilo que existe em outra coisa, por meio da qual é também concebido. (SPINOZA, 2008, p. 13)
Spinoza faz uma relação intrínseca entre substância e Deus, trazendo-o para a imanência, tirando-o de uma tradição transcendente. Pode-se interpretar que Spinoza estivesse afirmando com isso que Deus não existe, mas acreditamos que o filósofo estivesse fundando um neopaganismo (para dizer o mínimo, um paganismo sem idolatria à Natureza): Deus, para ele, está presente em todas as coisas; um Deus, em certo sentido, que traz Spinoza para um “animismo[2]”, visto que, se Deus está presente em tudo, logo tudo tem algum tipo de “vida”, daí decorrem as suas relações já discutidas com os estoicos. Spinoza (CHAUÍ, 2000, p. 131), em resposta a carta de Velthuysen, rejeita a alcunha de ateu e de ser contra a religião, porque a define como a “felicidade de conhecer a Deus e amá-lo de ânimo livre”. É esse conceito de Deus “cósmico” ― arriscaríamos: fractal ― que Einstein (1994) aceita, tornando Spinoza uma de suas grandes influências. Spinoza (SPINOZA, 2003), no entanto, diferencia fé de filosofia, colocando a primeira tendo como objeto a obediência e a piedade, e como fundamentos, as narrativas históricas e a língua; a segunda tem como objeto a verdade, e como fundamentos, as noções comuns. Nesse Tratado Teológico-político, o filósofo também se coloca contra os profetas, ligando essas noções à pura imaginação e aos milagres, no sentido de que Deus, perfeito, não mudaria a Natureza, sua expressão, que une o um e o múltiplo, ou, como coloca Deleuze (2012), expressão como unidade e complicação do múltiplo e explicação do um.
Na substância de Spinoza (Natureza Naturante), não há forma, isto já seria os “atributos” (Natureza Naturada) que emerge da substância. Segundo Spinoza, existem infinitos atributos, mas conhecemos apenas dois, o atributo pensamento (a mente, as ideias) e o atributo extensão. Os modos de expressão dos atributos estão em devir, no spinozismo. Com ajuda dos estoicos, concebemos a substância como anterior ao lugar, o lugar, mais propriamente a extensão, vai se dando no atributo, mas é importante conceber tais conceitos enquanto simultâneos. As relações entre atributos vão se dar pelos modos, mas não podemos concebê-los como separados. Na comparação de Chauí (2000, p. 881): “os atributos são a língua; os modos infinitos a gramática dos atos singulares de infinitas linguagens; e os modos finitos ou as coisas singulares, os atos de fala”. Claro que, no spinozismo, palavras e coisas são imanentes, diferentemente do paradigma que foi se instalando em sua época, como vimos no último capítulo. O conceito de substância vai ser seminal para a construção do conceito deleuziano de plano de imanência.
O que Spinoza quer com tais conceitos? Para ele, aumento de potência é alegria, consequentemente, perda de potência é tristeza. A alegria ocorre com bons encontros e a Ética seria aumentar tais bons encontros. Esta perspectiva vai diferenciar a Ética spinozista de uma moral: a moral é a priori da ordem do Bem e do Mal, a ética é da ordem do bom e do mau, a posteriori, construída junto com os fatos (DELEUZE, 2002). Esta ideia vai ser desenvolvida por Nietzsche em toda a sua crítica da moral. Spinoza (SPINOZA, 2003) diria também que a verdadeira felicidade é “a fruição” do bem, e não apenas um indívíduo fruir com o bem e outros carecerem.
Spinoza (2008) também se pergunta “o que pode um corpo?”, já que este corpo faz parte de toda a imanência, sem definir a potência de um corpo. Mas tal questão, remetida ao escopo spinozista, sugere inúmeras possibilidades, que vão ser exploradas por Deleuze e Guattari (1996) no conceito de Corpo sem Órgãos (CsO).
Spinoza (2008) afirma na parte V da Ética que é eterna a maior parte da alma de quem tenha o corpo possuidor de grande número de aptidões. Coloca, também, a ação como ingrediente para se caminhar para a perfeição e a felicidade como a própria virtude, sendo através dela que podemos ser senhores de nossas paixões. A parte V da Ética é um tributo à liberdade do homem. A questão do eterno em Spinoza é problematizada por Marilena Chauí (2000, p. 108–109n):
eternidade e duração não estão referidas ao tempo, mero ens imaginationis: eternidade não é simultaneidade dos tempos, mas existência necessária; duração não é sucessão dos tempos, mas força contínua de perseverar na existência; ambas são atualidade necessária da existência.
Spinoza quer que os bons encontros engendrem composição de modos até que se apreenda Deus, sendo que o amor de Deus por si mesmo é a liberdade suprema, amor infinito gerado pela intuição, terceiro gênero do conhecimento, superior ao primeiro, que é a imaginação, e ao segundo gênero do conhecimento, a reflexão. Se tudo é perfeito para Spinoza, é no sentido de que existem graus de perfeição. Para Chauí, a diferença entre imaginação e intuição ou entre ideia inadequada e ideia adequada é a mesma que há entre refração (quando o raio luminoso bate de forma oblíqua) e reflexão (quando o raio está na mesma direção) na teoria óptica de Kepler. Boyle também foi estudado por Spinoza, evidenciando o interesse do filósofo pela ciência, mas, à luz de um pensador da imanência, este negava veementemente a ideia de vácuo.
Também é conhecida a relação de Spinoza com o misticismo[3] (CHAUÍ, 2000). O filósofo teve influências da Cabala, do Hermetismo, Taoismo, Bramanismo etc., gerando uma longa tradição de pensadores que articulam o spinozismo com o misticismo.
Spinoza (1985), a despeito de ser autor de uma das mais belas e consistentes filosofias de todos os tempos, era também um homem de seu tempo, pois em outra obra inacabada, Tratado Político, opina que as mulheres, as imbecillitas, deveriam ficar de fora do processo democrático…
Leibniz
Gottfried Leibniz (1646–1716), pensador alemão, produziu nas áreas da física, matemática e filosofia. Criou o cálculo diferencial independentemente de Newton, o que gerou uma disputa judicial entre os dois. Existe uma relação entre a filosofia de Leibniz e o cálculo. Conheceu Spinoza, pensador que tinha uma grande ressonância com sua obra. Leibniz era um pensador ligado à monarquia, e conhecido por ter um comportamento boêmio. Foi convidado a ingressar na sociedade alquímica de Nuremberg depois de seu presidente ficar impressionado com a familiaridade de Leibniz com os segredos alquímicos (ACZEL, 2007).
Deleuze (2012) elenca as semelhanças do pensamento de Leibniz e Spinoza como sendo ambos um novo naturalismo que critica Descartes. Spinoza pela “facilidade” cartesiana e Leibniz por considerar Descartes “apressado” demais em explicar Deus, entre outras características. Além disso, tanto o conceito de modo como o de mônada entendem o indivíduo como “centro expressivo”. Já as diferenças são entre as expressões unívocas e expressões equívocas: a concepção de conatus em Spinoza é o esforço para preservar na existência; em Leibniz, tendências ao movimento e de uma essência à existência. Spinoza não faz nenhuma concessão à transcendência, e Leibniz, sim, no sentido de que é Deus (transcendente) que garante a existência da mônadas. Finalmente, Deleuze (1997) considera Leibniz como um filósofo de estética barroca de claro-escuro e Spinoza como tendo um jogo de mais e menos luz, ao estilo bizâncio.
Vamos enfatizar aqui o seu conceito mais intrigante e mais conhecido, e também um dos mais importantes para nossa travessia, as mônadas, mas antes vamos citar sua obra, Novos ensaios sobre o Entendimento Humano, na qual Leibniz (2000, p. 278, 279 e 355) inicia uma nova concepção, extremamente importante para nosso trabalho, acerca da diferença:
Por mais paradoxal que isso possa parecer ― é impossível para nós ter o conhecimento dos indivíduos e encontrar o meio de determinar exatamente a individualidade de alguma coisa, a menos que ela mesma a guarde; pois todas as circunstâncias podem repetir-se; as menores diferenças nos são insensíveis; o lugar ou o tempo, longe de serem elementos determinantes, necessitam eles mesmos ser determinados pelas coisas que contêm. O que há de mais considerável nisto é que a individualidade envolve o infinito, e só aquele que for capaz de compreender isto pode ter o conhecimento do princípio de individuação desta ou daquela coisa. Isto se deve à influência ― a ser entendida retamente ― de todas as coisas do universo, de umas sobre as outras. É bem verdade que assim não seria, se existissem os átomos de Demócrito; nesta hipótese, porém, tampouco haveria diferença entre dois indivíduos diferentes da mesma figura e mesmo tamanho. (…) A relação de comparação dá a diversidade e a identidade, ou em tudo ou em alguma coisa; é isto que faz o mesmo ou o diverso, o semelhante ou o dessemelhante. O concurso encerra o que vós denominais coexistência, isto é, conexão de existência. Quando, porém, se diz que uma coisa existe, ou que tem existência real, esta mesma existência constitui o predicado, ou seja, ela tem uma noção ligada à ideia de que se trata, havendo conexão entre as duas noções.
A relação do Cálculo Diferencial ― que é estabelecer o contínuo na matemática ― com o conceito de melhor dos mundos possíveis é que este possui “um máximo de relações e singularidades sob a condição da continuidade” (DELEUZE, 2006c), em outras palavras, o que une a matemática e a filosofia de Leibniz é a busca pelo contínuo, em que a diferença entre mundo incompossível e compossível é a mesma que entre divergência e convergência.
Atribui-se o aparecimento do conceito de mônada à Pitágoras, mas sua sistematização, a Monadologia, ficou a cargo de Leibniz. Segundo o filósofo (NEWTON–LEIBNIZ, 1983), a mônada são substância simples, sem partes, que não teme a dissolução, nem começa naturalmente, ou seja, apenas se recombina. As mônadas são totalmente fechadas, “sem janelas”, sendo todas diferentes entre si, cada uma mudando continuamente, a partir de um princípio interno. Leibniz, criticando os cartesianos, observa que, apesar de as mônadas não terem partes, possuem multiplicidade, pois na mudança gradativa algo muda (percepção, que é inexplicável por razões mecânicas) e algo permanece. São também um espelho vivo e perpétuo do universo sendo que, do que acontece em uma, o universo inteiro se ressente, o que nos leva a remeter a “Monadologia” como uma precursora do conceito de fractal do século XX, como afirma Deleuze (2000) e nos dá elementos para uma discussão sobre o pampsiquismo. Este texto de Leibniz é monádico em forma e conteúdo, pois é composto de noventa fragmentos, cada um deles trazendo uma característica sobre as mônadas. São “mônadas” falando acerca das mônadas.
As multiplicidades dos pontos de vista de cada mônada são integradas, segundo Leibniz, por Deus que é único e perfeito, e teria feito cada porção de matéria divisível ao infinito. Aqui nasce um conceito importante em Filosofia da Diferença, o perspectivismo. O conceito de mônada tem ressonâncias na Biologia com o conceito de íntegron de François Jacob e, na Mecânica Quântica, com o quantom, de Mario Bunge, e autômato celular, sobretudo na visão de Stephen Wolfram. Já falamos da relação com os fractais. Diante de todas essas ressonâncias, fica claro a potência do conceito de mônada.
Hume
David Hume (1711–1776) foi o principal empirista inglês. Ele é considerado também um filósofo da diferença, pois Deleuze (2006a) afirma que só o empirista pode dizer que o conceito são as próprias coisas, o que ajuda a pensar a relação entre natureza e cultura. Desdobrando esta temática, ele lembra que Hume foi o primeiro a chamar a atenção para o fato de que “as relações são exteriores a seus termos” (DELEUZE, 2006c), o que leva a repensar, dentro da questão natureza-cultura, o fato de que sujeito e objeto são exteriores à relação da qual são o resultado, não a causa.
Hume (2000) afirma ser a mente um sequência de percepções, sem substancialidade. Afirma que não existe prova das relações entre causa e efeito, que essas são feitas pelo hábito, costume: “o guia da vida, portanto, não é a razão, mas o costume”. Aqui já aparece uma crítica à representação. A filosofia radical de Hume questiona certos preceitos da física newtoniana e só devidamente destronadas pela própria ciência no advento do século XX, pela Mecânica Quântica e, mais tarde, pela Teoria do Caos.
Deleuze (2006c) afirma que o Tratado da Natureza Humana de Hume (2000) inaugura um novo tom na filosofia intervindo “ao mesmo tempo o exercício das ficções, a ciência da natureza humana, a prática dos artifícios”, fazendo assim uma pop’filosofia, e vai afirmar que o seu pensamento ― em conjunto com o de Guattari (DELEUZE e GUATTARI, 1995) ― aspira a uma pop’análise. Manuel de Landa (2006) afirma que a “natureza humana” que Hume evoca não é da ordem do Essencialismo, mas uma produção histórica contingente de todo organismo humano.
Tarde
Gabriel Tarde (1843–1904) foi, junto com Durkheim, um dos criadores da sociologia. Porém, em embates constantes com Durkheim, Tarde foi gradualmente esquecido, sendo recuperado na segunda metade do século XX, entres outros por Deleuze. Tarde é chamado por Bergson como “o filósofo da imitação”, doutrina para a qual Tarde muito produziu. Ficou conhecido principalmente por ela e pela Teoria da Multidão. Em uma óbvia provocação ao pensamento newtoniano, Tarde (2003) abre seu livro Monadologia e Sociologia ― obra que focaremos e que serve de base filosófica para os seus textos sociológicos ― com a seguinte epígrafe: “Hypotheses fingo” (faço hipóteses). Contrariando a famosa epígrafe de Newton, “não faço hipóteses”, ele também afirma que o filósofo não deve ter medo de ser ridículo…
A principal diferença que Gabriel Tarde coloca em relação às mônadas de Leibniz é que, para ele, as mônadas são abertas, tendem à simetria e à confluência. Os desdobramentos da “monadologia renovada” são muitos: Tarde afirma que o evolucionismo evolui, a diferença vai diferindo e a mudança vai mudando, “os tipos são apenas freios, as leis são apenas diques” (no devir). Essas afirmações são interessantes na medida em que o processo se altera no próprio ato de processar, o que nos leva a um plano de imanência que tende à imprevisibilidade.
Em relação ao psíquico, Tarde diz que qualquer parte ínfima das coisas o possui, o que insere esse pensamento numa perspectiva pampsiquista. Assim, para ele, o inconsciente é impossível, pois o que existiria são graus maiores e menores de consciência. Como exemplo, ele nos dá a organização das formigas e das abelhas, que parte de uma abelha (pouca inteligência), e se organiza em uma colmeia (mais inteligência). Ainda em termos que orbitam em torno da teoria da mente, o autor coloca que consciência é um estado passageiro de um elemento eterno que domina “uma população de irmãos tornados súditos” e, consequentemente, morte, “o destronamento gradual ou súbito, a abdicação voluntária ou forçada desse conquistador espiritual”.
Uma reflexão capital do autor é em relação aos opostos: o oposto do eu não é o não eu: é o meu, e o verdadeiro oposto do ser (ou tendo) não é o não ser, é o tido. Tarde diz que essa é a diferença fundamental entre a filosofia e a ciência, pois explica tudo pela propriedade, e a filosofia, pela entidade. Para ele, ser é ter, pois a “propriedade” de um proprietário é um conjunto de outros proprietários. Sociedades de sociedades: esta é a noção radical de sociologia de Gabriel Tarde ― os homens formam uma sociedade (e a sociologia de Durkheim se limita a esta), mas também suas células, seus átomos e os planetas do sistema solar: toda coisa é uma sociedade. Essa ideia nos fornece material para problematizarmos a questão sujeito-objeto com Bergson, Whitehead e Deleuze, principalmente.
Gabriel Tarde afirma que a realidade é indócil. Apesar de nossa intuição dizer que a matéria se relaciona entre ela e ela, na verdade é entre ela e nós. A propriedade da realidade exterior é, portanto, de resistir a nós. Aqui, Tarde se posiciona entre o mentalismo e o realismo; existe para ele, então, uma relação entre o mundo interior e o exterior.
Deleuze fez um brilhante estudo sobre a obra de Leibniz, A Dobra ― Leibniz e o Barroco (2000), utilizando, entre outros, Gabriel Tarde, e trazendo novas reflexões sobre as mônadas.
Para Deleuze, utilizando os números com inspiração pitagórica (número como essência das coisas), a mônada é o número inverso do infinito:
Mônada: 1/∞ e
Infinito (Deus): ∞/1
As mônadas, fazendo uma junção entre Leibniz e Tarde, teriam dois andares comunicantes, tal qual uma casa barroca: o andar de cima é fechado e “ressoante como um salão musical” (Leibniz), cheio de dobras ― cordas e molas ― onde estão os conhecimentos inatos, e o de baixo é perfurado de janelas (Tarde), onde estão as partes inferiores das cordas que oscilam ou vibram por intermédio destas janelas desencadeadas pelas solicitações da matéria.
Segundo Deleuze (2000) “o múltiplo seria não só o que tem muitas partes, mas o que é dobrado de muitas maneiras”. A dobra é um conceito de grande relevância para este estudo do filósofo: a dobra é a unidade da matéria e não o ponto ― o que torna este pensamento semelhante à teoria das supercordas na física contemporânea. O erro de Descartes, para Deleuze, seria “acreditar que a distinção real entre partes trazia consigo a separabilidade”. O mecanismo da matéria seria o da mola: contração e distensão, em que a desdobra não é o contrário da dobra, mas segue a dobra até outra dobra. A matéria orgânica tem dobras endógenas e a inorgânica, exógenas, porém, uma não se opõe à outra, apenas sofrem forças diferentes. A dobra passa entre a alma e o corpo, entre o orgânico e o inorgânico, é uma ligação primitiva não localizável.
A dobra, para Deleuze, é um conceito oculto na obra de Leibniz, porém fundamental, pois é o “local” onde as dualidades se retorcem e se encontram, são inflexões entre dentro e fora. A dobra por excelência seria o lugar na faixa de Moebius onde o fora se torna dentro e vice-versa:
Mas para Deleuze (2008), existe também uma superdobra, cuja imagem mais conhecida é a dupla hélice. Deleuze promove também um avanço no conceito de perspectivismo, remetendo-o a um pluralismo. Problematizando a noção de sujeito e objeto, o filósofo vai afirmar que cada mônada é um ponto de vista em que o sujeito se instala,
não é o ponto de vista que varia com o sujeito, pelo menos em primeiro lugar, ao contrário, o ponto de vista é a condição sob a qual um eventual sujeito apreende uma variação. (…) Trata-se não de uma variação da verdade de acordo com um sujeito, mas a condição sob a qual a verdade de uma variação aparece ao sujeito (DELEUZE, 2000, p. 40),
ou seja, não existem pontos de vista sobre as coisas, mas as coisas é que são os pontos de vista. Retornaremos a essa temática quando falarmos do conceito deleuziano de outrem.
A partir da afirmação de influência de uma mônada sobre a outra, Deleuze considera três tipos de mônadas: racionais, animais e degeneradas. As racionais dominam as animais, são unidades de mudança interna, atos, operam uma atualização; as animais são unidades de composição orgânica e quando estão em multidão são dominadas; e as degeneradas não dominam nem são dominadas, são inorgânicas e unidades de movimento exterior.
Numa abordagem semelhante à questão de “ser é ter” de Tarde, Deleuze vai desdobrar o pensamento de Leibniz em relação aos predicados enquanto acontecimento, e não enquanto atribuição. A atribuição é essencialista (a árvore é verde) e o acontecimento é relacional (a árvore verdeja). Existem relações, como, por exemplo, a luz do sol que torna a árvore verde, a árvore não é verde em si, pois, sem a relação com a luz, ela se torna escura. Aqui Deleuze cita os estoicos como referência.
Nietzsche
“Só temos escolha entre vidas medíocres e pensadores loucos”. Assim Deleuze (2009) fala acerca da vida e obra de Friedrich Nietzsche (1979) (1844–1900), um dos maiores filósofos alemães. Considerado poeta por muitos e psicólogo por ele mesmo, foi um grande crítico da moral ocidental, da ideia de verdade única; um pensador radical que afirma tudo, inclusive a dor. Deleuze (2006c) também diz: “Marx e Freud talvez sejam a aurora de uma cultura, mas Nietzsche é claramente outra coisa, ele é uma aurora de uma contracultura”. Com frases lapidares e de grande efeito, Nietzsche (2000) construiu uma obra de grande densidade e estética, um tanto poética, como nos aforismos de Além do Bem e do Mal: “As grandes épocas de nossa vida são aquelas em que temos a coragem de rebatizar nosso lado mau de nosso lado melhor”. E: “Por fim amamos o próprio desejo, e não o desejado”. Este último aforismo é bem demonstrativo da teoria do desejo que vai culminar em Deleuze, fazendo uma crítica ao sujeito e, por consequência, ao objeto: somos vetores de conexão de desejos, picamos e conectamos o desejo. O desejo quer mais desejo, e não, como quer o psicanalista ou o padre, a castração. Esta é a base da esquizoanálise (DELEUZE e GUATTARI, 1972). Mas as afirmações peculiares não cessam: “O que eu amo é uma virtude terrena, que se não relaciona com a sabedoria e o sentir comum” e “quando aprendemos melhor a divertir-nos, esquecemo-nos melhor de fazer mal aos outros e de inventar dores”.
Um conceito muito citado mas ainda misterioso em Nietzsche é o do eterno retorno, presente de forma efêmera em toda a sua obra. Deleuze (2006a) vai considerar o eterno retorno como eterno retorno da diferença, estabelecendo um ponto importante da Filosofia da Diferença.
Nietzsche (2002) promoveu um avanço nos estudos do perspectivismo: “Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um ‘conhecer’ perspectivo, e quanto mais afetos permitimos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso ‘conceito’ dela, nossa ‘objetividade’”. Devemos entender estes afetos e olhos que o filósofo cita, como coemergentes de um campo.
E qual seria o “método nietzschiano”? Dionisíaco, só poderia ser de uma forma: “A alegria surge como único móbil para filosofar” (DELEUZE, 2009). Os conceitos nietzschianos de “morte de Deus” (fim do pensamento único gerando multiplicidade) e de “além do homem” (o homem compondo com novas forças) causam controvérsia, mas Deleuze (2008) tem uma proposição interessante: a de que queremos uma nova forma de existência, mas que seja melhor que estas duas anteriores. Nos interessa sobretudo o conceito de contra-natureza de Nietzsche, ou seja, o fato de ser da natureza da Natureza ser contra ela mesma, gerando o novo. Finalmente, Nietzsche (2006) critica a relação que é normalmente estabelecida entre as bruxas e as histéricas. Entendemos que a diferença é que as histéricas estão intoxicadas de moral e as bruxas estão em pleno devir dionisíaco, o que traz novos elementos para as questões mais relevantes deste livro.
Bergson
Henri Bergson (1859–1941) foi um filósofo francês que se preocupou com a questão da experiência, da consciência e de toda a sua implicação na relação mente-corpo. Promessa da matemática francesa, em função da doença neurológica da filha, se voltou para as questões da mente e, por consequência, da filosofia.
Para Bergson, tudo são imagens, sendo que o cérebro é um editor de imagens como uma central de telefone, que também é uma imagem: “são as coisas que são luminosas por si mesmas, sem nada que as ilumine: toda consciência é alguma coisa, confunde-se com a coisa, isto é, com a imagem de luz” (DELEUZE, 1985).O objetivo da memória é a ação, é mudar o sensório-motor, o corpo, para gerar a ação. Porém, a memória não está no cérebro. A memória “está” no tempo. Estes conceitos bergsonianos geraram uma polêmica com Einstein a partir das reflexões que o filósofo produziu desde seu estudo da teoria da Relatividade, resultando na obra Duração e Simultaneidade (BERGSON, 2006a) em que ele afirma que o tempo é uma coexistência (simultaneidade) e que existe um tempo único e um tempo múltiplo das coisas. Para Bergson, lidamos com o presente a fim de realizar a ação. Não poderíamos ler este texto lidando ao mesmo tempo com o nosso nascimento e a nossa morte. O nosso aparelho sensório-motor contrai o tempo, para a duração exigida por nossa ação, e a memória necessária, como, por exemplo, a compreensão de alguma palavra ou conceito, ou alguma experiência vivida que ilustraria a compreensão. Ele chegou a esta ideia se utilizando também da literatura científico-neurológica da época, como, por exemplo, o estudo da afasia. O que é levado em conta na ação é o atual, e o que não é seria o virtual. Para Bergson, o presente é o que passa (Cronus), e o passado e o futuro, a coexistência na totalidade do tempo (Aion). Este conceito ficou conhecido em forma pictórica como o “cone”.
O ponto “S” é o presente que contrai o virtual, que é toda a multiplicidade da duração no atual, pela consciência, sendo que a duração é tempo que é experimentado pela consciência. É preciso lembrar que “consciência” aqui não é a de um indivíduo, a do sujeito. Os segmentos AB, A’B’ e A’’B’’ mostram o processo de contração ainda no virtual. Um exemplo que Bergson (1999) nos dá é ao escutarmos música. Ouvimos instantaneamente cada trecho, cada nota, mas a contração, a duração, é a experiência de melodia. Podemos fazer uma relação semelhante com os sons das palavras e a sintaxe. O ponto “S” contrai toda a melodia de AB. Sobre a ideia do cone, Bergson (2005a) mostra como Plotino já o conceituava de forma bastante semelhante, sendo que a ligação entre o transcendente e imanente em Plotino torna-se virtual e atual, respectivamente, em Bergson, ambos imanentes. Michel Serres (1997) compara um cone com a turbulência em espiral descrita por Lucrécio (“cone”, do latim: turbo) e diz que a filosofia de Bergson tem ressonância com o energetismo de Ostwald. Deleuze (1999): “A filosofia de Bergson remete-se em uma cosmologia, na qual tudo é mudança de tensão e de energia e nada mais”, ou, nas palavras de Frédéric Worms (2010, p. 263), considerado o maior especialista vivo em Bergson:
um ato, e não uma substância, não uma coisa a contemplar de fora, mas esse mesmo ato de se reunir a si mesmo no tempo que, em nós, seres conscientes, pode chegar à consciência explícita de si e que em toda parte, no real, consiste nessa síntese temporal de si, essa duração ou esse devir que não é, uma vez mais, nem uma pura passividade, nem o resultado de um ato exterior e em que consiste o coração do bergsonismo.
Segundo Deleuze e Guattari (1992) “é por desaceleração que a matéria se atualiza”.
Um dos fenômenos que Bergson explica a partir dos conceitos que envolvem o cone é acerca da experiência de déjà-vu. Segundo ele, o déjà-vu (ou paramnésia) ocorre quando a lembrança do presente é muito colada ao próprio presente, como um papel de um personagem ao ator (DELEUZE, 2005). Pensamos que é preciso desdobrar o problema do déjà-vu. No virtual, intui-se um futuro, e quando essa intuição é muito próxima do que realmente acontece no presente que passa, temos, então, a sensação de déjà-vu.
Bergson diferencia a oposição possível/real de virtual/atual, já que o possível é simplesmente o presente sendo recolocado no passado, e esta questão, para ele, não leva a nada. Tanto o atual como o virtual tem realidade. O possível é atual sem ter realidade. No atual, a diferença é de grau e no virtual, de natureza. No perspectivismo, essa questão ganha clareza.
Delanda (2004) nos dá mais elementos para a compreensão dos conceitos de atual e
virtual quando nos diz, no caso do vidro que, dependendo da escala de tempo, se contrai como sólido (milênios) ou líquido (presente), ou, um mesmo lago para um inseto ou mamífero, são atualizações do espaço que dependem também de uma escala.
O virtual é para Bergson (2009) a memória, como um espelho diante de um objeto, e o atual é a percepção. Em perigo iminente, quando parece que “somos agidos”, é na concepção bergsoniana, mais virtual do que atual. Em experiências de quase-morte, é comum os relatos de se vislumbrar a totalidade do passado. É aí que reside uma das maiores confirmações da filosofia bergsoniana: quando perdemos momentaneamente o interesse pela vida, quando descansamos quase plenamente do sensório-motor, apreendemos uma enorme parcela do virtual. O místico em Bergson (2005c) consiste em realizar cada vez mais essa apreensão. Em Deleuze (2005) a apreensão do virtual é um exercício de vidência. Se no bergsonismo editamos e vemos menos do que é, Deleuze clama que este menos não seja mais clichê (ver da mesma forma), mas que esse menos seja criativo, menos como diferença.
A telepatia, para Bergson (2009), acontece todo o tempo, e quando não é percebida é porque está acontecendo de forma pouco intensa, ou quando o cérebro quer preservar a nossa consciência. A antropologia já vinha debatendo o assunto. A partir das práticas de savage telepathy que Frazer comentava, Mauss (2003, p. 166) desdobra:
Todo corpo social é animado de um mesmo movimento. Não há mais indivíduos. Eles são, por assim dizer, as peças de uma máquina, ou, melhor ainda, os raios de uma roda, da qual a ciranda mágica, dançante e cantante, seria a imagem ideal, provavelmente primitiva, certamente reproduzida ainda nos casos citados e noutras partes.Acreditamos que a telepatia começa a ser algo “fora do comum”, ou até mesmo impossível, à medida que vai se constelando no sujeito uma noção advinda de um paradigma cartesiano cada vez mais “impermeável” de sujeito e ego.
A duração bergsoniana é, para Deleuze (1999), um aspecto do impulso vital, sendo uma virtualidade em vias de atualizar-se. Dialogando entre o evolucionismo e o lamarkismo, Bergson (2005b) conceitua o impulso vital como um esforço que passa pela vida animal e vegetal transformando-as, embora com limitações, assemelhando-se assim com as questões de “diques no devir” e “realidade indócil” em Gabriel Tarde (2003).
É necessário nos atentar para o que Bergson tem a nos dizer sobre a mudança. Em um dos seus artigos mais brilhantes, “A percepção da mudança”, Bergson (2006b) afirma que o movimento não acontece sobre algo, ele é o algo, em outras palavras, não há suporte para o devir. Quando temos a impressão de imobilidade, é devido a uma situação semelhante a dois trens em movimento paralelo na mesma velocidade. Um passageiro de um trem pode apertar a mão de outro, dando para ambos a impressão de que estão parados, um em relação ao outro, apesar de os dois trens estarem andando. Sendo assim, a impressão de imobilidade é devida a uma velocidade muito semelhante na mudança, e a imobilidade em si é, então, ontologicamente impossível.
Os conceitos de duração, impulso vital e intuição estão sobrepostos no pensamento de Bergson, o que significa que são conceitos muito semelhantes, mas que se aplicam a problemas diferentes. Deleuze (1999) afirma que a duração define uma multiplicidade virtual, a memória aparece como os graus de diferença nessa multiplicidade virtual, o impulso vital designa a atualização desse virtual segundo linhas de diferenciação que se correspondem com os graus de diferença e a intuição é o método bergsoniano, rigoroso e preciso, que é o fio metódico da duração, da memória e do impulso vital. Como diz Bergson (2006b): “A intuição é aquilo que atinge o espírito, a duração, a mudança pura”. A multiplicidade em Bergson (1927) não é como adjetivo, mas como substantivo, articulando o um e o múltiplo. Existe uma multiplicidade numérica, como adjetivo no atual e como substantivo no virtual.
Existem leituras da física segundo as quais o tempo coexiste. Para Greene (2005), o espaço-tempo é toda a realidade e é concebido como um pão de forma, onde as fatias mais retas mostram um “agora”. Dependendo do movimento dos observadores em questão, este “agora” muda e as fatias do pão vão ficando mais transversais. Para esta visão própria da física, o fluxo do tempo não seria um rio, mas um bloco de gelo. André Ferrer Martins (2007) comenta a obra do físico Paul Davies:
Esse autor, que se utiliza principalmente da teoria da Relatividade em suas argumentações, considera o tempo todo como inteiramente mapeado, contendo todos os eventos passados e futuros. Não haverá um momento especial, que pudesse ser designado “presente” (ou “agora”), até porque tal denominação depende do sistema de referência adotado.
O que Bergson faz, a partir de sua crítica à teoria da Relatividade, é, de certa forma, compatibilizá-la com a nossa experiência comum, o “sistema de referência adotado” citado acima, afirmando que o tempo coexiste, mas também passa, na contração do cone. A física, muito pouco preocupada com a subjetividade, vai conceber o bloco de espaço-tempo e afirmar que a intuição humana acerca do tempo e sua desconexão com o espaço é uma limitação de nosso aparelho cognitivo. Bergson afirma que o tempo coexiste e o presente funda nossa experiência do aqui e agora. Bergson (1927) já considerava, desde seu primeiro livro em 1889, que o tempo era uma quarta dimensão. O que o filósofo está fazendo é criar um modelo de consciência compatível com esta ideia. O cérebro, como uma central telefônica, procura uma imagem no tempo para atuar no presente da melhor forma possível, preparando o sensório-motor para determinada tarefa. Para Bergson, o tempo que coexiste, como dissemos, é a memória.
Norbert Elias (1998) defende que, com a luta entre sacerdotes e reis e a vitória dos últimos, o tempo se tornou um controle do estado, o que se solidificou com os calendários que eram decretados por estadistas. Com o desenvolvimento dos instrumentos de medição do tempo, o tempo social ganhou autonomia em relação ao tempo físico. A filosofia bergsoniana concilia essas concepções de tempo. Um maior desdobramento da questão do tempo nos levaria longe demais. Vamos deixar as palavras finais acerca desse tema a cargo de Roy Wagner (2010, p. 128), que vai trazer novos elementos acerca da invenção do tempo:
O que queremos dizer com “tempo”, e a coisa que está por detrás de toda essa paisagem de ciclos ― o situacional, o inatamente humano, o movimento e a evolução da “força natural” e o mundo fenomênico ― é a dialética inventiva: o aspecto contraditório, paradoxal e propulsor da cultura. Nossa Cultura da previsão intencional e da acumulação de conhecimento precipita esse movimento dialético ao contrainventá-lo, e, em razão do inevitável mascaramento que oculta essa forma de objetificação, eximimo-nos de assumir responsabilidade por isso. Dizemos que isso é inato em nós, que “é” o que somos, que é “realidade”, mapeada nos ritmos da natureza e na urgência de nosso mundo fenomênico. Isso subjaz e serve de fundamento ao nosso profundo e peculiar temor da mortalidade, da doença e da morte, que também precipitamos de tantas maneiras. Não “fazemos” isso, apenas “jogamos” com isso, ou o percebemos, a ponto de que nossas noções mesmas de “invenção”, “jogo” e “metáfora” são relegadas ao baú do “meramente simbólico”.
Outro aspecto importante na obra de Bergson seria a consequência de tudo ser imagem. Vejamos a relação sujeito-objeto. Tradicionalmente, o sujeito está desconectado do objeto e faz uma representação deste objeto em seu cérebro. Para Bergson, a imagem do objeto se estende ao sujeito, existe uma continuidade, e a classificação de sujeito e objeto seria, então, a posteriori.
Em relação ao inconsciente, Bergson diz que tanto chegar à totalidade do inconsciente como da consciência é impossível. Estamos sempre entre um polo e outro. Existem situações, por exemplo, no sonho, em que estamos recebendo informações como um cheiro ― consciente ― que aparece no sonho ― inconsciente. Qual é o estado em que estamos? Um estado parcialmente consciente e parcialmente inconsciente.
Em uma crítica a Kant, Bergson (2005b) afirma que matéria e inteligência se adaptaram progressivamente uma a outra em uma forma comum, sendo que este é o mesmo movimento natural que forma a intelectualidade do espírito e a materialidade das coisas.
Bergson (2004), num livro pouco comentado, mas totalmente em ressonância com toda a sua obra, intitulado O Riso, alerta para as possibilidades de humilhação e de amargor do riso, mas denuncia a rigidez do sensório-motor, colocando-o como o remédio para a vaidade; sendo a comicidade o nexo entre a arte e a vida, uma energia viva que se dirige à inteligência pura: “quanto mais rica for a criação, mais profunda será a alegria” (BERGSON, 2004). Deleuze (2005) diz que Bergson está ultrapassado na questão do cômico ser o mecânico aplicado no ser vivo em função do que ele vê na renovação do burlesco onírico nos filmes de Jerry Lewis: “um movimento de mundo levando e aspirando o ser vivo”. Bergson (2005c) finaliza sua obra clamando que o prazer deve ser eclipsado pela alegria, o que evidencia suas ressonâncias com o spinozismo.
Gaston Bachelard (2007), numa obra intitulada A intuição do instante, que versa sobre o conceito de siloë de Gaston Roupnel em oposição ao pensamento de Bergson, nos dá materiais importantes para evitar a má compreensão do pensamento bergsoniano. A siloë é o instante conceituado, do qual vai se construir a noção de tempo. Em Bergson, o instante não existe, é uma abstração, uma divisão matemática do tempo, uma manobra da inteligência para entender o devir. Lembremos que para Bergson, a percepção se dá por contrações, e estas não são instantes.
São notáveis as semelhanças entre o pensamento de Bergson e Spinoza, mas vamos realçar as diferenças, nas palavras de Worms (2010, p. 265):
Bergson não contentará ninguém: nem os que consideram um Deus transcendente, nem os que concebem a imanência sem ato sintético e temporal para unificá-la e mesmo para produzi-la. Não há somente uma natureza “naturante”, produtora de efeitos imanentes, no sentido de internos a uma totalidade dada, há também uma natureza que se aumenta, se renova, se cria, se acrescenta em permanência a sua totalidade aberta e não fechada. É essa abertura de totalidade imanente aos efeitos não dados nela previamente, aqui mundos novos, que diferencia Bergson de um Spinoza que ele compreende, entretanto, do interior e cuja filosofia é, no fundo, para ele, a única alternativa séria ao Deus transcendente da metafísica grega ou da filosofia moderna.
O amor, para Bergson (2005c), foi plagiado pelos românticos das características da mística. O amor vai, então, adquirir proporções cosmológicas: “foram chamados à existência seres que estavam destinados a amar e a ser amados, uma vez que a energia criadora deve definir-se pelo amor. Distintos de Deus, que é essa energia ela mesma, só podiam surgir num universo, e foi por isso que o universo surgiu”. Essa mística bergsoniana envolve apreender o virtual, mas sendo que esse processo alterna, em devir, todo o sistema.
Whitehead
Alfred Whitehead (1861–1947) foi um filósofo e lógico inglês, e escreveu um dos mais importantes tratados de lógica, o Principia Mathematica, junto com Bertrand Russel. Vai nos interessar aqui apenas sua obra filosófica.
Whitehead (1978), em um livro intitulado Process and Reality ― considerado por Deleuze (2006a) “um dos maiores livros da filosofia moderna” ―, apresenta uma grande concordância com o pensamento de Bergson e vai trabalhar a “Monadologia” de Leibniz, gerando uma conceituação própria. Vejamos: As ocasiões atuais[4] são imobilidades no processo, são partes de experiência, diferentes e interdependentes entre si. Uma junção de ocasiões atuais é chamada de nexus e um agrupamento de nexus é chamado de nexūs. As ocasiões atuais são novidades em devir do mundo atual em processo e são um significado peculiar deste mundo atual.
Whitehead nomeia seu pensamento de filosofia orgânica, pois, como diria Deleuze (2006d) em Bergson e em Whitehead, a matéria é vibração de vibração: tudo é vibração ― ecos herméticos… Segundo Whitehead (2006, p. 189):
O ponto de partida orgânico é da análise de processos como a realização de acontecimentos dispostos em comunidades que se comunicam entre si. O acontecimento seria a unidade das coisas reais. O modelo duradouro emergente é a estabilização da consecção emergente, de modo a tomar-se um fato que retém a sua identidade através do processo.
Whitehead considera que sua filosofia seria uma monadologia na qual as mônadas se atualizam e os seres compostos por mônadas em atualização seriam as ocasiões atuais. A mudança seria a diferença entre as ocasiões atuais. Whitehead explicita seu pensamento dizendo que uma molécula é uma “rota histórica” de ocasiões atuais na qual o movimento da molécula são as diferenças entre as sucessivas ocasiões atuais. A todo o tempo ela muda em constante atualização. Mas, segundo Deleuze (2000), “é preciso que uma permanência encarne-se no fluxo”. Seria o exemplo da grande pirâmide que Deleuze lembra em Whitehead (1994) que, pensando a teoria da Relatividade de Einstein e o problema de dois observadores no tempo, vai dizer que a pirâmide ontem e hoje serve de ponto de referência no fluxo do tempo “ao mesmo tempo em que toda a dança das moléculas e o jogo alternante do campo eletromagnético são ingredientes do evento”. O superjecto seria a preensão que vai do sujeito ao mundo. Nova etapa do perspectivismo:
Nosso “evento percipiente” é aquele evento incluído em nosso presente observacional que distinguimos como sendo, de algum modo peculiar, o nosso ponto de vista para a percepção. Trata-se, falando grosso modo, daquele evento que é nossa vida corporal no âmbito da duração presente (WHITEHEAD, 1994, p. 220).
Nas palavras de Deleuze (2000, p. 134 e 135):
A concrescência é uma coisa distinta de uma conexão ou de uma conjunção, é uma preensão: um elemento é o dado, o datum de um outro elemento que o preende. A preensão é a unidade individual. Toda coisa preende seus antecedentes e seus concomitantes, e de próximo em próximo preende o mundo. O olho é uma preensão da luz. Os viventes preendem a água, a terra, o carbono e os sais. (…) O vetor de preensão vai do mundo ao sujeito, do datum preendido ao preendente (“superjecto”). (…) Mas o datum, o preendido, é por sua vez uma preensão preexistente ou coexistente, de modo que toda preensão é preensão de preensão, e o acontecimento é “nexus de preensões”.
Um aspecto importante no pensamento de Whitehead é que este considera a experiência como parte da natureza. Isso quer dizer que a natureza não está separada do observador e, à medida que o observador observa, a natureza muda. Whitehead promove uma ontologização da experiência. Bateson (1987) diria que: “o processo mental é sempre uma sequência de interações entre partes”.
Whitehead (1978) traz reflexões acerca do tempo: o futuro, para ele, é real sem ser atual, enquanto que o passado é um nexus de atualidades. O futuro tem realidade objetiva no presente, mas não atualidade formal. Entendemos que o futuro é ontológico, mas o devir é novidade. Podemos marcar um encontro “daqui a uma hora” (futuro), mas não sabemos o que vai, de fato, acontecer.
O pensamento acerca de Deus e religião também povoa a obra de Whitehead (2006): “Deus é a última limitação, e a sua existência é a irracionalidade última”, e “Deus não é concreto, mas é a base da realidade concreta”, ou colocado de outra forma, Deus não é o criador do mundo, e, sim, o poeta do mundo (WHITEHEAD, 1978). Com essas reflexões, o filósofo abre, diferente do spinozismo “puro”, algumas microfissuras de transcendência em sua ontologia, como fica claro no jogo de contrastes ― e não de oposição, como ele ressalta ― entre mundo e Deus, pois ambos são permanentes e fluentes, uns e múltiplos, imanentes e transcendentes, sendo que um criou o outro. Mas onde tais questões nos levariam? Whitehead (2006) propõe: “o entrechoque [entre ciência e religião] é um sinal de que há mais amplas verdades e mais delicadas perspectivas nas quais se achará a reconciliação de uma religião mais profunda e com uma ciência mais sutil”!
Simondon
Gilbert Simondon (1924-1989) é um filósofo francês muito importante para a filosofia da diferença pois mostra claramente em sua obra o limite do modelo hilemórfico de Aristóteles, a saber, a determinação da forma sobre a matéria (SIMONDON, 2020). A partir dessa insuficiência, Simondon vai lançar mão do processo de individuação, diferenciação que mostra que indivíduo nunca está pronto, mas em relação com o meio, gerando o transinsdividual, a relação imanente entre esses processos.
Deleuze
Gilles Deleuze (1925–1995) é um filósofo francês dos mais influentes nos dias de hoje. É conhecido por seus trabalhos sobre Hume, Nietzsche, Spinoza, Bergson, Foucault, Leibniz, o pintor Francis Bacon e outras obras, das quais extraiu a radicalidade do tema da diferença e articulou estes pensamentos, entre outros saberes, com a ciência e a arte.
Deleuze (2006) cita em Diferença e Repetição uma pequena lista de sete conceitos, os itens do sistema do simulacro, em que “o diferente se refere ao diferente pela própria diferença”. Manuel Delanda (2004), em uma obra acerca dos conceitos de Deleuze e sua interface com uma ciência “menor”― não com a Royal Science ― chamada Intensive Science and Virtual Philosophy, afirma sobre a “lista ontológica” de Deleuze que “o virtual, o intensivo e o atual são aspectos de um único mesmo processo, ou diferentes momentos de uma cascata de progressiva diferenciação”.
Vamos citar e conceituar os sete itens colocando os outros conceitos que, segundo Delanda, se sobrepõem ao longo da obra de Deleuze, ou seja, Deleuze utilizou conceitos semelhantes ao longo de sua obra, mas de acordo com cada problema, ele modificava um pouco o conceito, mudando inclusive o nome. Os termos que vamos eleger para usarmos neste trabalho estarão em negrito, os outros estarão em itálico e, em sequência, vamos conceituá-los. Precisamos lembrar que os sete itens fazem parte de um processo de diferenciação em que o virtual é todo o tempo existente e o atual é esse tempo contraído para a ação no presente do sensório-motor, como já vimos em Bergson. Resumiremos o intensivo como diferenças que dirigem o fluxo de matéria-energia, sendo que Delanda (1997) nomeia como um só termo: matéria-energia-informação. Virtual, intensivo e atual coexistem, e os caminhos de um para outro são diferentes.
Delanda transforma o “sistema do simulacro de Deleuze” em uma Lista Ontológica deleuziana. Se nos guiarmos por Zourabichvili (2004), diríamos que quase não há ontológico em Deleuze, que este pensa sempre em termos “de devir”, outro trânsito conceitual, pois o devir não se limita ao “ser”. Porém, Delanda (2011), em seu mais recente livro, Philosophy and Simulation, propõe uma interessante ligação íntima entre ontologia e epistemologia, cuja conexão rompe com a ideia de ontologia no sentido grego, baseada no geral e no particular, e se baseia no singular individual e no singular universal. Um conceito que une ontologia e epistemologia nos é útil, pois é mais uma forma de ir além de uma dualidade que persegue o pensamento, pois tira da ontologia uma epistemologia que lhe é transcendente. Delanda (2004) nomeia sua ontologia de ontologia plana (flat ontology). A ontologia plana vai possibilitar desenvolvermos uma ontologia onírica.
Lista Ontológica de Deleuze:
Virtual: (Aion, o subjetivo)
1) Plano de Imanência ― (o conjunto de todos os) Corpos sem Órgãos, continuum, plano de consistência: a diferença pura, a velocidade infinita, o zero positivo. O plano coexiste com o caos e não pode ser pensado sem ele. Deleuze e Guattari (2002) pensam o tempo da filosofia como coexistência de vários planos, sem eliminar o antes e o depois, “o” plano que unifica todos seria o spinozista (substância). Os autores escrevem: “ele implica uma espécie de experimentação tateante, e seu traçado recorre a meios pouco confessáveis, pouco racionais e razoáveis. São meios da ordem do sonho, dos processos patológicos, das experiências esotéricas, da embriaguez ou do excesso”. O plano é pré-filosófico, lembrando que, desde Hume, os conceitos (próximo item) que emergem do plano são coisas, afinal, como diria Prado Jr. (2004), pensar o plano é trazer a filosofia de volta para a vida, ou, vice-versa, devolver vida à filosofia. Semelhante ao Tao no Taoismo, e “nirvana” no Budismo.
2) Multiplicidade ― séries disparatadas, conceitos, objetos parciais, eventos ideais, singularidades nomádicas, atributos noemáticos e essências vagas: entendida como substantivo, não como atributo ou adjetivo. Diferença de diferença produzindo divergência e descentramento. Aqui os vetores começam a aparecer, mas o sentido e a ligação ainda não estão definidos.
3) Máquinas abstratas ― linha de fuga, precursor sombrio, objeto = x, desterritorialização absoluta, nonsense, quase-causa, aleatório, personas conceituais e ponto paradoxal: é o que assegura a comunicação da multiplicidade, ou séries divergentes; é uma criação entre o rígido e o excessivamente livre. Segundo Guattari (1988, p. 10):
Nem a ideia platônica transcendente, nem a forma aristotélica adjacente a uma matéria amorfa, estas interações desterritorializadas, abstratas ou, mais resumidamente, estas máquinas abstratas, atravessam diversos níveis de realidade, fazem e desfazem estratificações. Não se agarra a um tempo único universal, mas a um plano de consistência, transespacial e transtemporal, que afeta um coeficiente relativo de existência.
A partir de Prigogine, Delanda (1991 e 1997) relaciona que este conceito tem como exemplo mais simples o de atrator e atratores em bifurcação, como o atrator estranho na Teoria do Caos.
Intensivo:
4) Ressonância ― movimentos forçados e ligação mutuamente estimulada. A ressonância é uma relação entre dois ou mais processos de devires, ou seja, uma relação de processos de diferenciação, não é relação do mesmo. Para Delanda, é também o que alguns cientistas chamam de campo morfogenético: uma instância de convergência. Simondon, autor presente ao longo da obra de Deleuze, é fundamental para compreender o conceito de ressonância: “o que Simondon elabora é toda uma ontologia, segundo a qual o Ser nunca é um: pré-individual, ele é mais que metaestável, superposto, simultâneo de si mesmo; individuado, ele é ainda múltiplo porque ‘polifasado’, ‘fase do devir que conduzirá a novas operações’” (DELEUZE, 2006c). Se em Simondon a ressonância é interna, em Deleuze ela ganha não localidade.
5) Mônadas ― auto-organização, dinamismo espaço-temporal, sujeito larval, eu passivo, afectos e pré-atualização: estamos considerando obviamente a conceituação deleuziana de mônadas. Não podemos perder de vista que este conceito é sobreposto ao de auto-organização, como veremos, para além do vivente, consideramos auto-organizáveis inclusive os seres não orgânicos.
Atual: (Cronus, o objetivo)
6) Molecular e molar ― extensões e qualidades, substância e forma, epistratos e paraestratos e célula e espécie: na passagem para o atual, em Deleuze, existe uma dupla articulação que é simultaneamente da ordem da qualidade e da extensão ― produz-se, por exemplo, a singularidade de um dado organismo, mas dentro de sua espécie.
7) Centro de Envolvimento ― acréscimo de complexidade dos seres vivos, evolução: o desdobramento físico-químico, orgânico e cultural sem envolver um evolucionismo teleológico. .
Podemos pensar o conceito de rizoma que Deleuze produziu em conjunto com Guattari (DELEUZE e GUATTARI, 1995) como um conceito único que abriga todas esses itens em uma só conceituação.
O conceito de rizoma foi retirado da botânica e pensado anteriormente por Gregory Bateson e também pelo analista suíço Carl Jung[5], mas foi com Deleuze e Guattari que o conceito conseguiu consistência e alcance. Viveiros de Castro (2007) afirma que os rizomas projetam uma ontologia fractal. O rizoma enquanto conceito aparece em sua forma “definitiva” com Deleuze e Guattari no livro Mil Platôs ― Capitalismo e Esquizofrenia, como introdução aos vários platôs do livro (e não capítulos, pois seria então um livro linear), este agora pensado como rizoma: o livro não é sobre o mundo, mas no mundo. Essa forma de composição do livro rizomático é inspirada no estilo cut-up do beatnik William S. Burroughs (1987) no livro Almoço Nu: pode-se começar o livro, que é composto por relatos das experiências de Burroughs com várias drogas, de qualquer capítulo, como uma espécie de colagem. Mil Platôs é um livro rizomático, que fala do rizoma e o aplica em várias esferas do saber. O platô 2, “Um só ou vários lobos?”, por exemplo, seria o rizoma usado para problematizar a psicanálise , o 3, “A Geologia da Moral (Quem a Terra pensa que é?)”, seria algo próximo a aplicação do rizoma na geologia, biologia e linguística.
O rizoma, na botânica, mostra que existem raízes de plantas que se conectam umas às outras de forma que não se sabe de qual planta é cada raiz. A árvore, filosoficamente falando, emprestaria sua imagem à estrutura. Todo este pensamento da diferença é considerado por muitos (a despeito do incômodo dos autores com este e quaisquer rótulos) como pós-estruturalista. Porém, é necessário lembrar, a árvore pode se conectar ao rizoma, ele não é, por assim dizer, excludente. Qualquer ponto do rizoma pode ser conectado a qualquer outro. Existe uma gradação nos fluxos do rizoma, em que um fluxo mais denso produz tubérculo (o atual e mais ainda, os “diques no devir”) e o menos denso possível é pura imanência e da ordem do virtual: Corpo sem Órgãos.
O antropólogo Tim Ingold (2015) propõe trocar a imagem do rizoma da botânica pelo micélio fúngico para o conceito de rizoma. Nós concordamos com isso, pois o rizoma é, na verdade, uma espécie de clonagem da natureza, e apenas uma praga pode destruir um rizoma inteiro, como no exemplo da bananeira e o micélio traz todas as características que Deleuze & Guattari propõem. A internet não seria um bom exemplo, pois foi dominado pelas grandes empresas como Google, Facebook, Apple, Amazon etc. O mapa aeroviário seria também um bom exemplo de rizoma.
O conceito de CsO sofreu algumas transformações ao longo da obra de Deleuze e Guattari (1996), chegando a sua maturidade no texto “Como criar para si um Corpo sem Órgãos”, platô 6 de Mil Platôs. A expressão foi criada pelo dramaturgo Antonin Artaud e, em seu conteúdo filosófico atual, pode ser entendida como uma ressignificação do corpo para novas sensações e práticas, para além de um organicismo. Um mergulho na imanência que, ao emergir, se acrescenta a essa nova potência de experiências. São exemplos de CsO as experiências de meditação, a extensão dos limites do corpo através do esporte e as experiências com algumas drogas. A prudência se instala para não se cair numa degração, drogradição ou até mesmo morte. O CsO pode ser entendido como uma espécie de “corpo sem organismo”. Voltaremos ao CsO no capítulo 4.
Sobre o conceito de devir, que atravessa toda a Filosofia da Diferença, Deleuze (2006b) traz uma abordagem inspirada nos romances de Lewis Carrol sobre Alice, em que o devir, paradoxalmente, “é a afirmação de dois sentidos ao mesmo tempo”. Lembremos que estes sempre estão em movimento. O devir é outro conceito que ganha uma nova potência em “Mil Platôs” (DELEUZE e GUATTARI, 1997): não mais uma impermanência cuja única permanência seria a perpétua mudança (“constante devir”, como se costuma dizer). Aqui, o devir é uma contranatureza ― no sentido de que é da natureza da Natureza ir contra ela ―, pura impermanência, inconstante devir. Não existe referência alguma para o devir, ele é mudança de mudança de mudança… ou seja, não mais a ideia de “usina” de produção, pois até a usina muda, inclusive o seu “ato de mudar”. Lembremos que, como vimos, já em Bergson, não há suporte para o devir, não há “coisas em movimento, o movimento é a coisa. O devir é a-histórico, geográfico, é da ordem do esquecimento e não da memória.
A esquizoanálise, que aparece primeiramente em O Anti-Édipo e depois em várias obras do clínico Félix Guattari, é constantemente atacada por tentativas de ser englobada pela psicanálise e afins. A esquizoanálise vai propor uma nova concepção de clínica, ligada à ética spinozista, no sentido de que ser clínico é aumentar a potência. Decorre daí a legitimação de a clínica ser exercida por não clínicos, mas artistas, punks, esquizos (não o esquizofrênico, mas algo além do “além do homem”, livre de instâncias normatizadoras e controladoras) etc., e com isso que ela não seja necessariamente em consultórios, mas nas ruas ou em qualquer lugar que se gere bons encontros. No capítulo 4, faremos alguns desdobramentos clínicos a partir da esquizoanálise, mas não se atando a ela.
Deleuze (1997) ― que realiza uma crítica ao cristianismo em prol do paganismo ―, ao definir a arte gótica, propõe uma peculiar noção de espiritualidade:
É, portanto, uma geometria, uma decoração tornada vital e profunda, sob a condição de não ser mais orgânica: ela eleva as forças mecânicas à intuição sensível, procede por movimento violento. E ela encontra o animal, se ela se torna animalesca, não é delineando uma forma, mas, ao contrário, impondo por sua nitidez, por sua precisão não orgânica, uma zona de indiscernibilidade das formas. Portanto, ela é testemunha de uma alta espiritualidade, pois é uma vontade espiritual que a leva para fora do orgânico em busca de forças elementares. Mas essa espiritualidade é a do corpo: o espírito é o próprio corpo, o corpo sem órgãos… (DELEUZE, 2007, p. 53)
Esse paganismo e espiritualidade deleuziana nos levam a mais uma consideração. Deleuze e Guattari (1992) elaboram as três filhas do caos, as caoides: a arte (variedades sensíveis que emolduram o caos) no campo intensivo, a filosofia (variações conceituais que se diferenciam do caos) no campo virtual e a ciência (variáveis funcionais que exploram o caos) no campo atual. Acrescentaríamos aqui, uma quarta caoide: a religião enquanto religare (variâncias que se tornam o caos) no outrora caos que todos queriam respirar dele. Não tratamos aqui da religião dogmática, doutrinária, mas uma religião neopagã, que possui um Deus spinozista, imanente, e até um Deus whiteheadiano, ou seja, um Deus-poeta. O mergulho no caos, para além até mesmo do plano de imanência, ambição para além do pensamento, exercício máximo da intuição. Essas caoides, renovadas, serão de extrema relevância para a consistência deste livro. Vale a lembrança que Delanda (2004) discorda de Deleuze e Guattari no tocante que apenas a ciência clássica é da ordem do atual, “funcional”. A Mecânica Quântica e os processos dinâmicos, Teoria do Caos, são do campo intensivo, ciência menor. Arte e ciência, pretendemos habitar esse platô!
Problematizando a questão de sujeito e objeto em ressonância com Bergson, como vimos anteriormente, Deleuze (2006a e 2006b) conceituou o outrem a partir do romance de Michel Tournier (1972), Sexta-feira ou Os limbos do Pacífico, que recria a história de Robinson Crusoé, colocando o outrem como condição dos posteriores sujeito e objeto que, no outrem, estão fusionados: “Há em mim um cosmo em gestação. Mas um cosmo em gestação chama-se caos. (…) O cosmo, todavia, deve procurar-se.” Depois de tentar reproduzir a sociedade ocidental (como no colonialista e eurocêntrico livro original de Daniel Dafoe) na ilha que ele batiza de Speranza, Robinson percebe que a ilha se torna ele e vice-versa. Uma quarta pessoa do singular ou uma terceira margem do rio, como explica Viveiros de Castro (2001). Outrem é uma expressão de um mundo possível, tema que vai ser caro à questão do perspectivismo. Comentando o livro de Tournier, Deleuze (2006b) expõe as questões suscitadas entre a problemática sujeito e objeto: “E todo o erro das teorias do conhecimento é o de postular a contemporaneidade do sujeito e objeto, enquanto que um não se constitui a não ser pelo aniquilamento do outro.” Em sua última obra conjunta, Deleuze e Guattari (1992) vão voltar ao conceito: “Outrem é sempre percebido como outro, mas, em seu conceito, ele é a condição de toda a percepção, para os outros como para nós. É a condição sob a qual passamos de um mundo a outro”.
Um bom desdobramento do conceito de outrem está na etnografia de Marilyn Strathern. De um trabalho etnográfico na Melanésia, Strathern (2006) publicou o livro O Gênero da Dádiva, um dos maiores expoentes da corrente feminista na antropologia. Para a autora, os melanésios entendem a pessoa como um microcosmo de relações, sendo que as relações são uma recursividade em que os objetos são personificados nas relações com objetivo de gerar mais relações, sendo eles, os objetos, apreendidos como causa e efeito das relações. O tema principal de Strathern são as dádivas (ou dons), o fenômeno do kula nos melanésios: “se, numa economia mercantil, as pessoas e as coisas assumem a forma social de coisas, numa economia de dádivas elas assumem a forma social de pessoas.” Os porcos, por exemplo, são considerados partes (des)conectáveis das pessoas, sendo que o marido que os vende é conectado à mulher que criou e alimentou o porco, sendo este (o porco) e o marido partes dela também. Estas relações de partes não possuem um centro, segundo Strathern, fazendo com que a economia da dádiva componha uma ideia de pessoa na Melanésia de modo diferente da “estrutura de ego” ocidental de um “indivíduo”. O que vai interessar a um perspectivismo é que a dádiva promove não uma troca do “dono” do objeto, mas uma troca de ponto de vista. O objeto de troca “permanece” sendo “observado” da mesma maneira, mas o ponto de vista dele é que se deslocou de “sujeito” com a troca. Assim, parte do antigo dono se destacou e agora faz parte do novo dono. As partes de que a autora fala podem compor partes dos dois sexos na mesma pessoa. A genitália da pessoa não é em si “sexual”, ela se torna sexual, masculino ou feminino, em uma relação sexual em que, apenas naquela relação, se exerce uma sexualidade masculina ou feminina.
O animismo e seu correlato monádico, o protopampsiquismo, vão estar presentes em algumas intuições da Filosofia da Diferença, como já vimos, e nas discussões em que ela se torna pertinente para a discussão contemporânea sobre a consciência. Para além das dualidades, inclusive da orgânico/inorgânico. Estamos aqui relacionando de modo muito próximo a vida e a mente. Ressoamos com o animismo na obra já citada de Tim Ingold, em que as coisas não são vivas, mas se inscrevem na vida.
Delanda
Manuel Delanda, filósofo mexicano contemporâneo radicado nos Estados Unidos, faz parte de uma corrente filosófica intitulada neomaterialismo, ou, mais recentemente, neorrealismo. A primeira obra de Manuel Delanda (1991), War in the age of Intelligent Machine, articula o conceito de Deleuze e Guattari de máquina abstrata com as interfaces homem-máquina, evidenciadas pelo avanço tecnológico, e como a Inteligência Artificial, nos jogos de guerra. A partir deste ponto, Delanda vai desenvolver a ideia de vida não orgânica, mostrando que os relógios químicos e organismos multicelulares são essencialmente similares, fazendo a máquina abstrata articular as pessoas em uma entidade coletiva.
Delanda publicou o livro seguinte, A Thousand Years of Nonlinear History (1997), no qual critica o nosso “chauvinismo orgânico”, afirmando que os processos geológicos, os processos biológicos e a linguagem funcionam através de uma mesma máquina abstrata. A “máquina abstrata”, como vimos no item 3 da lista ontológica de Deleuze, é um conceito de Deleuze e Guattari que trata de processos de transformação que acontecem em vários níveis de realidade no espaço e no tempo. Diferentemente da máquina mecânica, a máquina abstrata é comparável às espécies vivas, inclusive em sistemas não orgânicos.
A utilização peculiar que Delanda faz da máquina abstrata é a de afirmar que fluxos de magmas e pedaços de granito se organizam em estruturas geológicas maiores, como montanhas, e fluxos de genes se organizam nas espécies e fluxos de dialetos se organizam em uma língua, sendo que todas as etapas destes processos coexistem. Colocando estes processos neste âmbito, Delanda se posiciona entre os pensadores que não separam natureza e cultura, chegando a afirmar que o advento do osso é uma nova etapa geológica da Terra e que as cidades são um exoesqueleto do ser humano. O autor adverte que é errado comparar as cidades a um organismo, pois cidades e organismos têm diferentes homeostases distantes do equilíbrio, com maiores ou menores fluxos de matéria-energia-informação. Estas considerações não são metafóricas, como o autor chama a atenção. Delanda encerra seu livro chamando atenção para o processo de desestratificação (quando se cria CsO, quando se vai do atual para o virtual, quando se “mergulha” brevemente rumo à imanência) ― os momentos mais bonitos na natureza. Por exemplo, o bico do pássaro era um órgão exclusivo da alimentação que depois se tornou também uma espécie de instrumento musical. Se Delanda parece evitar os desdobramentos da máquina abstrata no tocante ao mental, Bruzzo e Vimal (2007) acrescentariam que nos neurônios existe um processo caótico de auto-organização, o que acreditamos estar implícito em Delanda quando ele fala de auto-organização linguística.
Manuel Delanda (2004) lança em seguida o já comentado livro sobre Deleuze e a ciência, Intensive Science and Virtual Philosophy, e, a seguir, a obra acerca do conceito de Deleuze e Guattari de agenciamento, A New Philosophy of Society. Neste livro, o autor desdobra as características do agenciamento: às relações de afetação de vários corpos e sua instabilidade, que são recorrentes territorializações e desterritorializações, Delanda (2006) acrescenta mais uma característica que se desdobra, um processo que tanto traz rigidez ao agenciamento (identidade) como pode flexibilizá-lo, gerando as fontes genéticas ou linguísticas (processo de codificação e descodificação). Delanda chama atenção para os agenciamentos ― conceito de Deleuze e Guattari que ele desenvolve ― do tipo micro-macro, que não podem ser entendidos simplesmente como bonecas russas (um dentro do outro). Ele cita o sociólogo Dean R. Gerstein, que diz, por exemplo, a satisfação em relação ao emprego de um trabalhador, que pode ser macro se relacionada ao estresse psicológico de seu filho, mas micro em relação a seu emprego, que é micro em relação à eficiência do escritório que ele trabalha, que é micro em relação à condição financeira da corporação e que é micro em relação ao ciclo de negócios internacionais. Em seu último livro, Philosophy and Simulation, Delanda (2011) vai pensar o agenciamento como uma singularidade individual ou uma hecceidade, no sentido de Duns Scott, ou seja, ligado à experiência e não a uma “essência”. Nesse livro, Delanda ― que parece ser o filósofo atual que mais estreita as relações entre natureza e cultura ― propõe que autômatos celulares, sobretudo aqueles que simulam o fluxo de fluidos, podem simular a origem da vida em uma sopa pré-biótica.
Os autômatos celulares são uma criação de John Conway em seu Jogo da Vida, programa simples de computador que gera possibilidades complexas. Esses autômatos foram levados a um novo patamar por Stephen Wolfram (2002), colocando-os com aplicações em vários campos do saber. Os autômatos celulares são uma espécie de “mônadas” digitais, fazendo Wolfram criar um movimento filosófico que recebeu a alcunha de “filosofia digital”, tendo em Leibniz o seu precursor.
Todos esses autores no promovem uma Filosofia da Diferença enquanto força, e não enquanto forma. Agora, vamos rumar para a ciência, engendrando interfaces possíveis com o pensamento que desenvolvemos aqui.
Notas
[1] Ressonâncias desse “vazio pleno” se encontram no trecho do poema de Nuno Ramos (2011): “Nunca houve/ vácuo, nunca um/ nada vago (…) Tudo é cheio/ grudado no vizinho/ o ovário sozinho”.
[2] Para mais detalhes do (neo)animismo, clique AQUI.
[3] Existem várias passagens no Bhagavad Gita (BORREL, 1973) – um dos textos sagrados mais importantes do Hinduísmo, provavelmente surgido no século IV a.C. – que, apesar de não haver indícios de que Spinoza a tenha lido, í inegável as ressonâncias entre Gita e o spinozismo. Para citar algumas: “Com a vida do dia, o universo manifesto surge do imanifesto e, se chegar a noite, tudo se desvanece no imanifesto”, sendo que o “imanifesto” é uma tradução para mûlaprakriti – essência da matéria primordial, cósmica, caótica ou indiferenciada. Também: “Porque na realidade ninguém permanece inativo um instante sequer, pois todo homem se vê impelido à ação, ainda que a despeito de si mesmo, pelas qualidades que brotam da natureza material” e “Entende que de Mim procedem as naturezas individuais formadas pelas qualidades sattva, rajas e tamas. Eu não estou nelas, mas elas estão em Mim”.
[4] O tradutor Hermann Herbert Watzlawick traduz “actual occasions” por “circunstâncias reais” (WHITEHEAD, 2006). Optamos por uma tradução literal porque Whitehead (1978) diz que o futuro é real sem ser atual (“the future is merely real, whithout being actual”) e isso nos permite manter “actual” como “atual”, pois assim explicitamos as ressonâncias com a filosofia de Bergson, visto que ambos se influenciam.
[5] Nas palavras de Jung (1963), em autobiografia narrada à Aniela Jaffé em 1957 e publicada em 1961: “A vida do homem é uma tentativa aleatória (…) [que] sempre se me afigurou uma planta que extrai sua vitalidade do rizoma. (…) Quando se pensa no futuro e no desaparecimento infinito da vida e das culturas, não podemos nos furtar a uma impressão de futilidade; mas nunca perdi o sentimento da perenidade da vida sob a eterna mudança. O que vemos é a floração – e ela desaparece. Mas o rizoma persiste”.
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