O horror que nos pensa:

Dos sussurros paracósmicos à intenstranheza

Nelson Job

O manifesto e o imanifesto são apenas o escabelo de seus pés.
Kabir

A coerência e a extrema consistência também estão presentes,
a seu modo, na loucura, até de modo mais exacerbado.
Lautréamont

É tempo de abandonar o mundo dos civilizados e sua luz.
Georges Bataille

Liberdade é apenas mais uma palavra para nada a perder.
Kris Kristofferson

Ver no vácuo sombrio como afinal fica de pé.
Samuel Beckett

A laboriosidade do caos se propaga.
Jorge Baron Biza

A realidade não é mais o que costumava ser —
isso nunca deixou de ser verdade.
David Peak

Estudos apontam que tá foda.
Frase em camiseta

O motoqueiro do iFood atravessa insandecidamente a rua, passando por entre um carro e um ônibus em uma fresta mínima, não sem xingar o motorista do carro. Em seguida, ele briga com a moradora de um prédio, que não quer descer para pegar a pizza. O eleitor decide votar no candidato depois de assistir a um vídeo no TikTok em que ele leva uma cadeirada e é encaminhado ao hospital. Mas ele não acenou positivamente antes e disse “vai”? Uma em cada 50, ou melhor, 44, ou melhor, 36 crianças são autistas. E o número só aumenta. Ou diminui. Depende. A “causa” é o glifosato, a mudança no modo de diagnosticar ou o desequilíbrio da flora intestinal? Neurocientistas, que provavelmente não jogam games, decretam que, pela primeira vez na história, a atual geração mais jovem é menos inteligente que a anterior. Afinal, estamos ou não estamos no tal do Antropoceno? A Rússia está perdendo a guerra para a Ucrânia, não… a Ucrânia está perdendo, mas… os pagers e rádios portáteis explodiram no Líbano devido a um ataque… não sei bem que tipo de ataque foi esse, mas sei que foi de Israel. Taylor Swift é a artista pop de maior sucesso no mundo, mas seus fãs não lembram direito do show. Esse diagnóstico é de depressão, ansiedade, síndrome do pânico, solastalgia ou tudo isso junto? O telescópio James Webb eliminou a hipótese do Big Bang? O Big Bang é uma hipótese?

Não estamos vivendo uma crise, mas uma ubiquidade, multiplicidade de crises — climática, política, financeira, espiritual, de saúde, da atenção etc. —, o que, por si só, destitui a crise de sentido, pois ela se tornou a norma, de modo que a instável e frágil ordem da polis vem se constituindo enquanto a crise da crise. Obviamente, o pensamento também está em crise. Não há nenhum campo do saber, ramo de pesquisa etc. que seja estável e confiável o suficiente para apontar caminhos consistentes ou sequer alívio. Todos fracassaram ou estão fracassando e, na melhor das hipóteses, certo pensamento agrada a determinado nicho, muitas vezes causando total repulsa no outro, e isso, em muitas ocasiões, é premeditado para… gerar crise, afinal, com crise se maneja melhor as massas. O que fazer? Neste artigo, vamos propor que, se o mundo está um horror crescente, é justamente nas obras de terror e horror contemporâneas que vamos encontrar um viés e não apenas de pensamento.

Nossa abordagem traz ressonâncias: o filósofo Eugene Thacker, em sua brilhante trilogia Horror of Philosophy, mostra tanto o que há de horror na filosofia como o que há de filosófico nas obras ficcionais de horror. Para o autor pessimista (cósmico), se, na filosofia de Kant se aponta o limite do pensamento, na literatura de horror (cósmico) de H. P. Lovecraft se aponta, por sua vez, o pensamento como limite.

Antes de mais nada: qual a diferença entre terror e horror? Segundo a romancista e poeta do século XVIII, Ann Radcliffe, em seu texto “O sobrenatural na literatura”, a distinção é temporal e espacial: o terror é a sensação de que algo ruim está para acontecer e o horror é a repulsa de algo que acabou de acontecer ou está acontecendo. Thacker acrescenta, a partir de Lovecraft, que o horror é o medo do desconhecido.

Alguns filmes de horror já tiveram destaque, mas dificilmente eram considerados obras de arte. Durante muito tempo, o filme de horror estava destinado a ser caracterizado enquanto um “filme B” e a ter baixos orçamentos, com raras exceções, como Nosferatu de Murnau, O exorcista de William Friedkin (a segunda maior bilheteria de filmes de horror de todos os tempos, sendo a primeira por décadas) e Possessão de Andrzej Żuławski.

Algo vem mudando nos últimos anos. Os filmes de horror, em suas variadas vertentes (slasher, horror corporal, horror folclórico, terrir, terror com elementos de ficção científica e/ou de thriller etc.), vêm aumentando a sua produção, muitos ganhando um estatuto mais “artístico”, respeitabilidade crescente da crítica. De modo que, neste ano, são justamente os filmes de horror/terror que vêm tendo mais destaque na mídia, como Longlegs, de Oz Perkins (que obteve a melhor abertura de todos os tempos para um filme de terror independente), Entrevista com o demônio de Colin Cairnes e Cameron Cairnes (com uma abordagem inovadora: a entrevista de uma possuída em um programa televisivo ao vivo), A substância de Coralie Fargeat (um ótimo horror corporal, com referências à obsessão do entretenimento com a juventude e às soluções fáceis para problemas de saúde, bem como ao modo insidioso que a indústria farmacêutica se aproveita disso), Imaculada de Michael Mohan (mais um filme de horror com a temática de freiras), In a Violent Nature de Chris Nash (conhecido por trazer o ponto de vista do assassino sobrenatural de slasher), mas também 2024 é o ano do retorno bem-sucedido de várias franquias, como Alien: Romulus de Fede Alvarez, A primeira profecia de Arkasha Stevenson, Beetlejuice 2 de Tim Burton, Um lugar silencioso: dia um de John Krasinski, MaXXXine de Ti West (cuja trilogia se inicia rompendo com os dogmas tradicionais do slasher) e refilmagens, como o incômodo Não fale o Mal de James Watkins. E ainda estrearão muitos outros.

O horror na cultura de massas não se manifesta apenas no cinema e nos livros e contos, mas também em games e nos quadrinhos, como nas obras de Richard Corben, em parte significativa do que Alan Moore escreveu e em séries fechadas como Gideon Falls de Jeff Lemire e Andrea Sorrentino, mas o destaque é nos mangás,  como os de Junji Ito, sobretudo na sua obra-prima, Uzumaki (que comentamos em nosso livro Vórtex: modulação na Unidade Dinâmica e ganha certa atenção em Horror of Philosophy de Thacker)  e no gênero ero guro (erótico grotesco), cujo grande nome é Suehiro Maruo, com obras marcadas pela erudição e crítica social, e Shintaro Kago, que experimenta inventivas metanarrativas.

Para apreender melhor o fenômeno do horror no cinema, vamos comentar um filme franco-canadense de 2008, Mártires de Pascal Langier, uma das obras mais emblemáticas do movimento cinematográfico conhecido como “Novo extremismo francês”. Mártires pode ser dividido em duas partes: a primeira, mostrando a fuga e a lenta recuperação da personagem Lucie, e a segunda, em torno do processo de tortura da personagem Anna. Aparentemente, o filme mostra excessiva violência gratuita, mas, na verdade, nada é gratuito em Mártires. Segundo Silas Rodrigues Machado, Antonio Rediver Guizzo e Fernando Mesquita de Faria, no artigo “Testemunha dentro e fora: violência, trauma e memória em Martyrs (2008)”, a fuga de Lucie é propositadamente composta por frames que remetem à famosa foto de 1972 de Huynh Cong “Nick” Ut, na Associated Press, mostrando a fuga de uma menina durante a guerra do Vietnã, entre outras crianças, com soldados ao fundo, assim como uma cena em que personagens desovam cadáveres em um vale, que remete, por sua vez, às fotos do holocausto nazista.

Na segunda metade de Mártires, revela-se que os responsáveis por tudo são membros de uma seita de arianos que torturam mártires com o objetivo de obter, por meio deles, alguma revelação do mundo após a morte. Depois de suportar estoicamente inúmeras torturas, Anna tem a revelação e a sussurra para a líder da seita, chamada de Mademoiselle. Antes de informar aos demais membros da seita, Mademoiselle — impactada com a revelação, que o espectador desconhece — tira a própria vida com um tiro na boca.

O que Anna revelou para Mademoiselle? Para David Peak, em seu The Spectacle of the Void, a mártir revela algo em ressonância com a obra de Lovecraft: o vazio, o nada, a indiferença do cosmos em relação ao humano. Nesse sentido, o que Mademoiselle não suporta é constatar que o mundo e o além-mundo não são antropocêntricos.

É preciso apreender as noções de “vazio”, “nada” e “desconhecido” neste artigo como um desconhecido absoluto, ou seja, retirar deles as categorias ontológicas, epistemológicas e religiosas. É fato que “vontade” no filósofo Arthur Schopenhauer e “imanifesto” nas sabedorias orientais ainda trazem um aspecto ontológico ou informações excessivas, que nos servirão aqui enquanto trampolim, ou seja, sua utilização é provisória dada as limitações do texto enquanto mídia, no sentido que toda linguagem ou qualquer forma de conhecimento, representação etc. é insuficiente para apreender o desconhecido absoluto. Mesmo o “Não-ser/Uno” neoplatônico e suas ressonâncias na teologia negativa ou apofática, que nos ajudam de alguma forma, também são insuficientes. Esses saberes nos mantêm no dualismo entre desconhecimento absoluto e o que experimentamos na vida cotidiana, mas nos permitem ganhar impulso para vislumbrar algo além e até mesmo supor que não vivemos um dualismo: ainda que desconheçamos as nuances do desconhecido absoluto, poderíamos inferir que existimos em uma extensão aparentemente conhecida nele.

Thacker inicia seu Horror of Philosophy distinguindo o mundo para nós, que seria o mundo antropocêntrico, o mundo em si, que seria a tentativa de pensar o mundo dado, mas que a ciência gera um paradoxo, que se expressa na postura de, ao mesmo tempo em que se busca entendê-lo com “isenção”, se quer interferir nele e, finalmente, o mundo sem nós, que seria o mundo espectral e especulativo, tanto das obras de horror como da própria obra que Thacker está constituindo, ressoando com outros autores e que ajudaria a pensar o mundo em si sem cair em paradoxos. O mundo sem nós é um eixo importante para este artigo. Obviamente, aqui Lovecraft será relevante: Thacker cita uma carta do autor de Providence em que ele não se diz nem pessimista, nem otimista, considerando as duas posturas ilógicas, mas sim um indiferencista. A indiferença do cosmos em relação à humanidade, recorrente na obra de Lovecraft, é comumente chamada de cosmicismo. Assim, o mundo sem nós não trata de misantropia, mas de certo indiferentismo.

O indiferentismo de Lovecraft vai ressoar em Schopenhauer, constantemente citado por Thacker. O filósofo alemão é comumente associado a uma filosofia “pessimista”, apesar de ele quase não citar o termo em sua obra. Schopenhauer foi muito influenciado por textos hindus e budistas que começaram a ser publicados na Europa em sua juventude, no início do século XIX, de modo que o seu conceito de vontade vai estar associado com o imanifesto dessas sabedorias e representação com o manifesto. O próprio budismo, em linhas gerais, afirma que o manifesto é um mundo impermanente e de sofrimentos, buscando atingir a iluminação ao ter acesso ao imanifesto. O que Thacker propõe é: se Schopenhauer pode ser associado a um “pessimismo”, este deveria receber o estatuto de cósmico, desassociado de uma postura individual. O pessimismo cósmico seria, então, a crítica da razão suficiente de autores como Leibniz e Spinoza, ao afirmarem uma certa “lógica da Natureza” ou “ordem do mundo”, ou seja, para Schopenhauer, a vida, a Natureza e o cosmos não têm sentido em si, a priori, de modo que a busca é se apreender enquanto algo além do humano (e o mundo que o humano apreende ordinariamente seria a representação) se instalando o mais diretamente possível na vontade, o que seria próximo da “revelação” ou “iluminação”. Schopenhauer é explícito em O mundo como vontade e representação, e ao longo de toda sua obra, que ele é contra o suicídio. O suicídio envolveria, nos termos de Thacker, uma pessoa iludida pelo mundo para nós, antropocêntrica, de modo que, para Schopenhauer, o suicídio é inútil, impedindo o mais importante, que é o acesso mais direto possível à vontade. Por sua vez, o escritor de horror Thomas Ligotti, em seu contundente livro teórico, The Conspiracy against the Human Race, propõe, a partir de Lovecraft, o termo kenophilia, baseado no “maravilhamento ontológico” de Lovecraft em relação ao desconhecido.

Thacker chama de “ontologia da generosidade” a obra de autores como Bergson, Whitehead e Deleuze, ao pensar “a vida como gênese” e de fenomenologistas como Husserl, que pensam a “vida como doação”. Schopenhauer, e outros autores que Thacker celebra, vão pensar nem a vida nem o ser como base, mas sim o nada, nesse ponto, se inspirando também na Escola de Kyoto.

Fica mais evidente a liberdade que o pessimismo cósmico de Thacker propõe: se a “ontologia da generosidade” parte da vida, ela se torna moralista e dogmática em relação à vida, e partindo-se do nada, de fato, doa a quem doer, se ganha muito mais liberdade.

Em seu livro com Dominic Pettman, Sad Planets, Thacker traz a personagem de Justine no belo filme Melancolia de Lars von Trier, que, diante da iminência da destruição da Terra (não chamaremos mais a Terra de “nosso planeta”), se comporta com muito mais tranquilidade do que os outros personagens, como sua desesperada irmã e seu cunhado, que se mata. Justine, a depressiva, afirma que a Natureza é má com a mesma tranquilidade com que espera o iminente fim do “mundo”. Tanto Thacker como Ligotti, em ressonância com certa polêmica oriunda da neurociência, vão dizer que os ditos “pessimistas” tendem a se suicidar menos e a lidar melhor com crises por estarem mais aptos a conviver com as agruras do mundo. De todo modo, há muito, é de conhecimento da psiquiatria que, em guerras, os esquizofrênicos tendem a “melhorar”…

De fato, a vida enquanto base de Deleuze & Guattari permitiu que sua esquizoanálise apenas se tornasse um apêndice da psicanálise, tendo Deleuze terminado a sua vida drasticamente e Guattari passado o resto da sua existência em uma depressão crônica, como revela François Dosse em sua Biografia cruzada. A alegria enquanto potência, ao que parece, fracassou. Não afirmamos isso reduzindo a obra à vida pessoal. Quando Guattari decide substituir a “estrutura” pelo “máquina” — migrando do estruturalismo para uma filosofia da diferença, transformando o inconsciente pessoal freudiano em um inconsciente “impessoal” e, em seguida, em um inconsciente “maquínico” aliado a “máquinas abstratas” —, ele faz uma aposta na cibernética e no que hoje a Tecnologia da Informação transforma o planeta em uma espécie de “sociedade de controle” muito mais severa do que foi certa vez anunciada pelo seu parceiro Deleuze, gerida por algoritmos. De modo que não é que a Inteligência Artificial “se parece” com os humanos, mas os humanos, com seus smartphones, redes sociais e aplicativos, se tornam cada vez mais “maquínicos”. Nenhum conceito deveria otimizar essa tragédia, ademais, nada é mais rizomático do que o próprio capitalismo, para citar outro conceito importante dos autores franceses. De tal maneira que pensar rizomaticamente é, de certo modo, aderir ao capitalismo e legitimar a crença de sua inevitabilidade. Para apreender algo além do capitalismo, sem cair na brincadeira irrelevante do “aceleracionismo”, é preciso outro modo de pensar e ir além do pensamento, que é o que buscamos neste artigo, com a advertência de que é justamente pela ineficácia do pensamento em pensar o mundo que ele tem sido insuficiente em produzir uma ação política eficiente. E para terminar esse pequeno resumo de críticas à filosofia da diferença e seus desdobramentos, o conceito de inconsciente também não nos interessa: seria mais um dualismo — o de consciente e inconsciente — que tem um funcionamento termodinâmico: o psiquismo, imanente ao corpo, possui um aparente funcionamento termodinâmico, mas que pode ser transduzido em uma dinâmica energética outra, quem sabe, quântica. Nesse ponto, o conceito de Corpo sem Órgãos de Deleuze e Guattari — uma versão ocidental e contemporânea do corpo iogue — produz certa deriva, mas que remete a um “plano de imanência” axiomático e que carrega o horror vacui típico da ontologia da generosidade em relação ao desconhecido absoluto.

Aqui cabe um intermezzo para os meus antigos leitores: como assim estou aceitando a crítica a autores tão celebrados por mim em outros textos? Desde sempre venho buscando ressoar a filosofia da diferença e algo estranho a ela. Em meu primeiro livro, Ontologia Onírica, era o sonho e o hermetismo, terminando com o enunciado: “o sentido da vida é criar sentidos para ela”, ou seja, a vida não tem sentido em si. Ainda estou fiel a esse propósito, ainda que, ao não trabalhar mais com uma teoria que proponha a vida como “base”, a busca pelo seu “sentido” se torna uma tarefa menos relevante. Nesse mesmo livro, desenvolvo o conceito de transcendência a posteriori, denunciando o moralismo da pura imanência na filosofia da diferença. O passo seguinte foi conjurar uma bruxaria deleuziana. A transcendência a posteriori se desdobra, em meu livro seguinte, Vórtex, na concepção de que o vórtex é instável e pode deixar de ser ele mesmo. Nesse mesmo livro, é criado o exercício em vórtex, prática meditativa para nos apreendermos mais espontaneamente enquanto vórtex (que pode deixar de ser ele mesmo, vale lembrar). Finalmente, no Livro na borogodança, crio o conceito para abandonar os conceitos — o impensamental —, mostrando justamente o limite de se “pensar o impensável”, o que Deleuze tanto celebra na filosofia, de modo que convido a habitar com intimidade crescente o impensável. O impensamental mostra os limites não só do conceito oriundo das “humanidades”, mas também das funções científicas, dos afectos e perceptos artísticos e do dogma religioso. O impensamental do livro é a própria borogodança, emergindo ao longo do manifesto e imanifesto, em um radical processo de desreferencialização. A desreferencialização nos levou a este artigo. Fim do intermezzo.

Pettman e Thacker expandem a ideia de depressão, indo além da psiquiatria, cujo uso do conceito de depressão é recente, datando do início do século XX. Se nutrindo das discussões alquímicas, artísticas e filosóficas em relação à melancolia e do spleen de Baudelaire, os autores propõem que a depressão seja relacionada menos com algo “interior” e mais com uma atmosfera. Nesse sentido, a depressão seria mais um tipo de humor, que unifica emoção e afeto. A escolha de atmosfera aqui é precisa: Lovecraft, endossado por Ligotti, celebra a atmosfera de uma ficção de horror como mais importante do que os personagens. Acrescentamos que personagens que se impõem à atmosfera estão relacionados a um dualismo de sujeito e objeto, tornando a narrativa menos sensível ao nada infinitamente aberto (em que o cosmos é uma extensão, ou melhor, é sua própria extensividade) no horror, ainda que essa reflexão sirva não só para a literatura e a arte, alcançando um estatuto paracósmico, aqui apreendido não apenas como “mundo imaginário”, mas a uma instância em que se apreende o cosmos e algo além dele.

Para Pettman e Thacker, a depressão, como conceituada acima, seria uma resposta mais adequada à atual ubiquidade de crises do que resignação, esperança, desespero e ansiedade. A depressão medicada, posto a influência da Big Pharma em vários aspectos sociais, gera o sorriso amarelo, onipresente nas redes sociais. A partir disso, não surpreende a popularidade de filmes com o Coringa, vilão mais emblemático do universo de Batman, e outros palhaços assustadores, como Pennywise em It de Andy Muschietti (cujo primeiro filme baseado no romance homônimo de Stephen King é a maior bilheteria de um filme de terror de todos os tempos) e Art, na franquia Terrifier de Damien Leone. A profusão de sorrisos assustadores culmina na franquia Sorria de Parker Finn, em que um sorriso é o elemento de contágio de uma sequência de mortes sobrenaturais. Indo além do universo cinematográfico, cabe lembrar do palhaço Ronald McDonald, uma espécie de CEO da rede de junky food, conhecido por oferecer sorrindo uma alimentação que também pode ser fatal.

Se o sorriso amarelo é algo pernicioso, diferente é a gargalhada. O mago Peter J. Carroll, em Liber Null e Psiconauta, considera a gargalhada a mais elevada das emoções, por conter todas, do êxtase ao pesar: “A gargalhada é a única atitude sustentável em um universo que é uma piada sobre si mesmo”.

Se, de um lado, a alegria enquanto potência de Spinoza — que traz liberdade, segundo o polidor de lentes — é limitada, compondo com a moral, que gera os sorrisos amarelos que citamos acima, e, por outro, o pessimismo cósmico é um conceito que nos traz liberdade maior que a de Spinoza, como nos posicionaremos diante dessa passagem da alegria para o pessimismo? Seria esse o preço de uma liberdade mais ampla?

Primeiro, é importante lembrar a importantíssima crítica do Gruppo di Nun, coletivo ocultista italiano, em sua Demonologia Rivoluzionaria: toda filosofia isola um aspecto da realidade e a transforma em uma fundação por onde o corpo teórico vai operar. No entanto, a realidade resiste a todas essas operações. De um modo bem diferente, Philip K. Dick, em sua intrigante conferência How to Build a Universe That Doesn’t Fall Apart Two Days Later, realiza uma crítica semelhante, utilizando os mesmos exemplos de Nun — ao oporem as filosofias de Heráclito e Parmênides —, colocando em questão a própria realidade. Apreendendo de outro ângulo esse mesmo problema, cabe também a reflexão do escritor Jorge Luis Borges, em sua conferência La literatura fantástica, que coloca a filosofia como trazendo conceitos mais estranhos que a própria literatura fantástica. Borges termina por perguntar se a vida pertence ao gênero real ou ao gênero fantástico. Erick Felinto, em seu belo artigo “Mundos estranhos: ecos do niilismo e do pessimismo na imaginação flussiana” (no prelo), aloca esse tema borgiano, e outros afins deste artigo, no âmbito do pessimismo cósmico.

A alegria enquanto potência (que conduz à liberdade) em Spinoza se baseia em uma espécie de “axioma” a priori: a ideia de Deus. Não só evitaremos essa premissa de Spinoza, como também toda a filosofia ficará sob suspeita diante das questões acima. As filosofias são especulações e/ou “delírios” sobre o mundo que a realidade teima em resistir, existindo — como diria Thacker em seu pequeno livro Cosmic Pessimism (não confundir com a conferência de mesmo nome) — entre o axioma e o suspiro e, por sua vez, o pessimismo titubeia e paira.

Thacker insere o pessimismo em um curioso espectro. Em seu texto “Remote: The Forgetting of the World”, inspirado em Du Noir universe do não-filósofo François Laruelle, ele escreve que onde o eremita termina, começa o pessimista, que vai viver longe das pessoas, entre as pessoas. Já em sua conferência Cosmic Pessimism, ele diz que o pessimismo é muito derrotista para ser místico, que este seria “invejável”, concluindo que os pessimistas são místicos fracassados.

O Gruppo di Nun, lidando com referenciais próximos de Thacker e com a obra do próprio, é composto por místicos que se nutrem do niilismo. Sua proposta é realizar um ocultismo tão radical quanto o de Julius Evola, mas com características antifascistas. No entanto, como vários dos autores que citamos aqui, Nun aposta na entropia cósmica, se apoiando firmemente na termodinâmica. Assim como eles próprios confrontam filosofias diferentes que acabam por se anular, para criticar a própria filosofia, cabe também opor modelos cosmológicos como o do Big Bang — que terminam em um universo extinto pela termodinâmica — às cosmologias como a de Fred Hoyle — que se fortaleceu com as novas descobertas do telescópio James Webb —, cuja concepção é de um cosmos que está sempre se autogestando ao expelir novas galáxias. Assim, se não devemos nos basear firmemente em nenhuma filosofia, tampouco devemos confiar cegamente em modelos cosmológicos, ainda que eles possam fornecer historinhas divertidas sobre o início, o fim ou a continuidade do cosmos.

O filósofo Claudio Kulesko, membro do Gruppo di Nun, em um corajoso artigo recente, “Spectres of the Will: Tree Encontres with the Supernatural in light of Arthur Schopenhauer’s Philosophy”, narra três experiências pessoais com entidades e cenários sobrenaturais, cujo exercício conceitual que o conduziu a uma reflexão mais adequada à experiência foi o de Schopenhauer, quando este coloca a experiência com espíritos em um aspecto ontológico próximo ao das ocorrências dos sonhos, que é se encontrar em um limite extremo entre a vontade e a representação, fronteira essa em que o impossível se torna possível. Acrescentamos, como foi feito em meu Borogodança, que não apenas sonho e mediunidade estão nesse lugar, mas também o próprio processo criativo, cujas distinções se dão mais por se respaldarem no contexto em que elas ocorreram, a saber: sono, “experiência mística” (ritualizada ou espontânea) e inspiração, respectivamente. Para nós, tudo se dá nesta fronteira, de modo que seus extremos (vontade ou imanifesto e representação ou manifesto) são taxonomias do pensamento, acomodações das várias facetas e estratégias do controle e das convenções culturais. Claro que o trânsito livre ao longo dessa fronteira ocorre nos interstícios de outra fronteira, esta, um tanto insidiosa: a do “normal” e “patológico”. Nela, cabe a astúcia desviante das convenções, ou seja, estamos apostando menos na “clínica” e mais na desenvoltura e intimidade no impensável, o esplêndido exercício de surfar na fronteira. Sim, não estamos propondo facilidades ao compartilhar nossos vislumbres de algo além.

Voltando a Thacker e ao misticismo, ele propõe em Horror of Philosophy uma paradoxal iluminação negra e um misticismo sem Deus, afirmando que a experiência mística revela a própria impossibilidade da experiência. Nesse ponto, ressoamos plenamente com Thacker quando propomos uma desreferencialização radical, que busca desreferencializar não só o pensamento — incluindo as noções de “deus”, “consciência”, “vida” e mesmo “realidade”) —, mas também a própria percepção, culminando em algo para além do humano em nós.

Se “pessimismo cósmico” é um termo que carrega um campo semântico derrotista, o que podemos cunhar conjurando as instâncias do paradoxal eremita social místico que se lança para uma desferencialização absoluta? O “estranho” não nos serve, pois sua etimologia se refere apenas a algo exterior, ao “estrangeiro”. O unheimlich de Freud, seja entendido como “estranho familiar” ou “infamiliar”, está eivado de termodinâmica e sua entrópica “pulsão de morte”, além de remeter a um “inconsciente” — conceito que criticamos, pelo seu dualismo, como foi feito acima — que, ainda pior, é “pessoal”. O übermensch (“além-homem” ou “super-homem”) de Nietzsche, por ser oriundo da ontologia da generosidade, é apenas uma inspiração provisória e o Não-ser/Uno do neoplatonismo de Plotino, como comentamos anteriormente, é um indício, uma pista, mas é preciso ir além, com alguma prudência e coragem. Almejamos algo como a substância proposta por Ben Woodard em seu On an Underground Earth: um eixo entre imensidão e mínimo, intercalando o interior e o exterior; e ressoaremos tudo isso com o habitar a fronteira entre a vontade e a representação de Schopenhauer. Beckett coloca isso em (des)palavras no seu obscuro texto “Pra frente o pior”, expresso mais intensamente nos trechos a seguir:

Dizer um corpo. Onde nenhum. Nenhuma mente. (…) Falhar melhor. (…) Saber mínimo. Saber nada não. (…) Falhar melhor pior agora. (…) Sede de tudo. Germe de tudo. Nenhum futuro nisso. Ai sim. (…) Outro lugar onde nenhum. (…) O vácuo não pode ir. Salvo se a penumbra for. Então todos se vão. (…) A cabeça. Não perguntar se ela pode ir. Dizer não. (…) Algo não errado com todos. (…) Que palavras para o quê então? Como elas quase ecoam. Como de algum modo de algum macio da mente elas vazam. (…) Não piorar ainda a fenda. (…) Dito é dito mal. (…) Tão longe longe longe de errado. Tentar melhor pior um outro olhar fixo quando com palavras que quando sem. (…) Inampliável indiminuível impiorável sempimáximo quase vácuo. (…) Dito de nenhum modo adiante.

Em silêncio, em respeito a Beckett, seguiremos, mas não sabemos se “adiante”, apenas insistimos nisto.

Para dar conta provisoriamente do problema semântico do pessimismo cósmico, propomos adotar o termo intenstranheza, que traz uma intensidade ao longo do interior e do exterior, de modo que essas categorias não façam mais sentido, sendo algo em nós coextensivo com o cosmos e com o impensável, o imanifesto, o além do cosmos: o intenstranho como “estranho” a si mesmo.

Thacker escreve no livro Cosmic Pessimism que nós não vivemos, mas somos vividos. Poderíamos dizer que também não pensamos, somos pensados, e somos pensados pelo horror neste artigo. Todavia, o horror, enquanto medo do desconhecido, só o é para o “sujeito cartesiano” e até mesmo para o humano e não para aquele que acolhe e cultiva a intenstranheza, de maneira que, diferente de Mademoiselle, ao ouvir os sussurros do além de Anna, podemos inicialmente temê-lo, mas também suportá-lo e até nos regozijar. O intenstranho: aquele que gargalha paracosmicamente.

Alerta de “transdução” paracósmica:
Nisto, vislumbramos ürmN

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