Vila de Vortexa
Vortexa se multiplica por contágio, por ressonância.
A metrópole falhou[i]. Em vários sentidos: em bem-estar, em ser sustentável ecologicamente, no seu sistema de transporte, e, sobretudo, na sua capacidade de fazer os cidadãos se encontrarem. As cidades urbanas se tornaram um campo paradoxal repleto de “solidões”. Além disso, atualmente tornou-se evidente o quanto as metrópoles são foco de transmissão doenças.
Por outro lado, as propostas de vilas alternativas em geral possuem tendências muitos específicas. Se as vilas anarquistas duram pouco tempo, apenas alguns anos, as outras se constroem geralmente em torno de apenas um tema principal, seja ele a alimentação saudável, a meditação, o sexo livre, o desenvolvimento do “parapsiquismo”, as propostas libertárias de educação, a ausência de dinheiro, a ausência de Estado, o sistema de crença pagão, podendo alguns desses termas combinarem-se em algumas delas.
Os transaberes estão no mundo e o que almejamos é construir algo que, diferente de negar o mundo, propõe ser um local onde os transaberes possam ser exercidos plenamente, mas em constante diálogo com o mundo. A essa proposta chamamos de vila de Vortexa.
Os principais conceitos que norteiam Vortexa emergem ao longo do nosso livro Vórtex: modulações na Unidade Dinâmica, a saber: o campo conceitual e experimental transberes, de onde emergem os conceitos Unidade Dinâmica, vórtex e anarquia sagrada. Vamos aqui apenas fornecer sugestões de como isso pode ocorrer, sabendo que é um projeto ainda germinal. Vortexa já existe, em vibrações sutis, mas pode adquirir mais densidade caso muitos ressoem com o objetivo de torná-la mais palpável. Por enquanto, sua vibração se aloca em nossas consciências.
O conceito chave de Vortexa é que seja uma vila para ser uma espécie de campus descentrado. A ideia é que os vórtexes que ressoarem com Vortexa venham para aprender a aprender os conceitos dos transaberes e desdobrá-los, transformá-los, criando outros. Os “professores” são facilitadores, ou melhor, atratores, e usam as técnicas educativas que acharem adequadas para minimizar a hierarquia entre atrator e novo aprendiz.
Sugerimos que os encontros sejam, quando possível, ao ar livre e que, em algum momento, passem pelo exercício em vórtex.
A população sugerida é em torno de mil a três mil pessoas. Mais do que isso, outra vila pode ser criada: Vortexa se multiplica por contágio, por ressonância.
O mais importante é que inexista um lugar instituído de líder, muito menos políticos: as deliberações podem ser por autogestão, lembrando que, como é visto em “Vórtex 4 – Anarquia sagrada”, a autogestão possui limites e cabem concessões em determinadas situações, sabendo que possa emergir lideranças eventuais e contextuais.
Também inexistem patrões e trabalhos, no sentido de alguém ou alguma “instituição” que forneça trabalhos. Existem atividades livres e de acordo com o desejo de cada vórtex, levando em conta a ética e as deliberações da autogestão.
Uma possibilidade seria Vortexa estar em local com muita vegetação e proximidade com algum rio, tendo proximidade a centros urbanos, para se poder adquirir mantimentos e receber outros vórtexes, convidados ou novos moradores. Por isso, deveria estar a algumas horas de um aeroporto. A vegetação adequada é a que possibilita plantações orgânicas e criação de animais.
As construções de moradia ofereceriam conforto e seriam feitas de material ecológico. O ideal seria usar o máximo possível de energia limpa e implementar vasos sanitários com biodigestores.
Que inexistam automóveis dentro da vila. Apenas bicicletas e, caso se construam vilas vizinhas, que haja trens elétricos entre elas. Caso visitantes venham de carro, que os deixem do lado nas imediações. O transporte público seria para se transportar habitantes para fora da vila e para voltarem à ela.
As edificações de atividades articulam educação, lazer, saúde, à luz dos transaberes. Por exemplo, uma edificação destinada ao exercício em vórtex, também poderia ser onde sejam trabalhadas as conceituações relativas ao conceito de instância de vibração máxima, e onde possa ser aprendido música instrumental. A arquitetura deveria estabelecer ressonância com o que se faz ali, pensando as edificações de forma que sejam menos compartimentadas e mais relacionais: por exemplo, pensar em uma arquitetura menos quadrada e mais redonda, posto que isso facilita as modulações de vibração.
Que as crianças brinquem muito, mas que os atratores estimulem brincadeiras que convidem ao esforço coletivo e minimizem a competição, sem proibir jogos que as crianças queiram jogar e porventura sejam competitivos, desde que adequado para sua idade.
Vortexa poderia possuir uma moeda local. Gostamos do nome kula para essa moeda, baseada no ritual fractal e comercial de mesmo nome descrito por Marilyn Strathern, em O gênero da dádiva, que trata de sociedades da Melanésia que trocavam artefatos, fazendo com que a sociedade inteira habitasse cada habitante e vice-versa, entendendo o artefato trocado como uma extensão das famílias que o produziram. Existem sempre as possibilidades de escambo, de sistemas de crédito mútuo e, claro, que o kula possa se converter em quaisquer moedas de âmbito financeiro mundial, sobretudo das cidades vizinhas.
Nossa experiência convida a construir o hábito de organizar periodicamente o evento Co(s)micidades. Esse nome provém da coexistência do cósmico e do cômico. Talvez o conceito de cosmicidade[ii] associado a Lovecraft convide a uma ressonância sombria. De fato, a “humanidade” é algo ínfimo no cosmos, sem um caráter de superioridade ou central, no entanto, o pertencimento cósmico, ainda que descentrado, deveria – diferentemente da obra do escritor norte-americano – ser celebrado. No Co(s)micidades, os convidados são instruídos a se manifestar (sem receberem a qualificação de “palestrantes”) de forma curta e precisa, convidando os outros participantes a falar. Convidados e outros participantes se distribuem misturados na roda, sem centralidade ou palco. O convite é que o processo conceitual e criativo emerja o máximo possível em grupo, sendo que a disposição dos assentos e forma de organização contribuem para isso. De preferência, que se tenha uma grande festa ao final do Co(s)micidades, incluindo sempre bandas locais com repertório próprio, mesclados às músicas de gosto pessoal de todos.
A festa é um dos principais leitmotivs de Vortexa: a celebração da vida, do estar junto, da ressonância da capacidade de ampliação da modulação de vibrações e do cultivo de intimidade cósmica.
Lembrando que tudo isso são sugestões. Vortexa, claro, é norteada pela sua autonomia. Independente da intensidade de Vortexa, já somos vortexanos. Habitamos Vortexa em vibrações mais sutis. Quando estamos caminhando com nossos corpos biológicos, nos reconhecemos pelo olhar, pela ressonância de nosso vórtexes, através da intuição. Somos uma comunidade de vortexanos aqui e agora. Nosso trabalho agora é uivar, como uivam os beatniks e o Coiote, para que aumente a ressonância entre nós.
Notas:
[i] Conselho Noturno, Um habitar mais forte que a metrópole.
[ii] Lovecraft era conservador, racista e ressentido pelo seu fracasso financeiro e afetivo em Nova Iorque. Segundo Michel Houllebecq em seu H. P. Lovecraft: contra o mundo, contra a vida, essas características podem ter afluído na obra de Lovecraft através do seu desprezo pela humanidade, que chamamos aqui de cosmicidade. Já o fato do filho de Providence ser cético, é mais controverso. Kenneth Grant em seu O renascer da magia, afirma que Lovecraft fez parte do culto de Crowley, sem tê-lo terminado, e, em seguida, negando a realidade do que ele experimentou lá. Grant chega a fazer uma tabela comparativa das entidades e termos utilizados por Lovecraft em seus contos com as citações na obra de Crowley. No entanto, Lovecraft possuía considerável proficiência em lidar com seus sonhos: grande parte das suas inspirações provinham deles, o que ficava mais evidente em seus contos que se passam nas Dreamlands, a dimensão onírica dos contos de Lovecraft, conhecidos como o Ciclo dos sonhos, dos quais já citamos o conto “Através dos portais da chave de prata”. Tal proficiência fazia com que Lovecraft considerasse a psicanálise um “simbolismo infantil”. Lovecraft trata o “sobrenatural” como algo negativo, o que nos transaberes ganha outro estatuto: o “sobrenatural” é natural, prescindindo de um julgamento a priori de “negativo” ou “positivo”. A avaliação se dá no processo, variando a partir da constatação de que essas vibrações restringem ou ampliam a capacidade de modulação do vórtex.